Este fim-de-semana jantei com amigos e comentou-se que, ao contrário de tantos outros países europeus, em Portugal não havia uma elite. No nosso país, conceções tradicionais de classe social frequentemente não vêm acompanhadas de poder económico, e vice-versa, a elite cultural e académica raramente pertence a uma classe socioeconómica privilegiada, e o locus do poder político é — e deve ser! — muitas vezes independente de tudo isto.
Enquanto alguns clamam por uma elite a puxar pelo moralmente certo, a fazer pressão política, mediática, económica e intelectual, por outro lado vejo um grande perigo numa ideia tradicional de elite. As elites serviram fundamentalmente para manter o status quo e estruturas de opressão, nomeadamente pela justificação da sua liderança política subjacente a uma ideia de moralidade superior, fosse ela pela noção do fundamento divino do poder, fosse ela sujeita à ideia de racionalidade da Idade Moderna, a que só as elites cultas e educadas teriam acesso, mesmo no republicanismo. O século XX viu outros tipos de elites surgir, culminando na elite tecnocrática e da meritocracia no voltar do milénio.
As elites serviram fundamentalmente para manter o status quo e estruturas de opressão, nomeadamente pela justificação da sua liderança política subjacente a uma ideia de moralidade superior, fosse ela pela noção do fundamento divino do poder, fosse ela sujeita à ideia de racionalidade da Idade Moderna, a que só as elites cultas e educadas teriam acesso, mesmo no republicanismo. O século XX viu outros tipos de elites surgir, culminando na elite tecnocrática e da meritocracia no voltar do milénio.
Entendo que as autoproclamadas elites não podem arrogar-se do monopólio da clareza moral e dos valores, sem corrermos no risco de graves deturpações e violações da dignidade da pessoa humana institucionalizadas — fenómenos que, de resto, não são estranhos à história. A própria noção de elite, seja qual ela for, e independentemente do critério atributivo desse estatuto (ascendência, dinheiro, educação) é uma estrutura de estase, antitética a processos de autorreflexão e supressão do erro. Por isso, numa Europa social-democrata e humanista, convivo bem com o fim do regime das elites. Se em Portugal não há elites tradicionais, então quais há?
Quem andar pelas redes sociais, pensará que em Portugal só se veem “sempre as mesmas pessoas”, os influencers. Quem ler revistas cor-de-rosa, pensará que em Portugal só se veem outras pessoas, mas sempre as mesmas, o antigo jet set. Quem vibra com adrenalina e emoção futebolística o furor do telejornal e dos milhares de desdobramentos de programas de opinião achará que são outras, pese embora sempre as mesmas. Atrevo-me a sugerir que todas estas “elites” não passam de feiras das vaidades, igualmente fúteis e igualmente desinteressantes…
Neste Portugal sem elite, mas de muitas elites, há uma menos visível que as outras, mas que faz o país andar para a frente. É a elite composta pelas pessoas mais insuspeitas: a da sociedade civil mobilizada. A elite das pessoas que participam no associativismo e do voluntariado, dando-se generosamente a si e ao seu tempo pelas causas em que acreditam. Os membros das ordens profissionais, que trabalham para melhorar as condições dos seus colegas. As pessoas que participam do poder local, dando-se generosamente a si e ao seu tempo para melhorar a área onde residem. As pessoas que participam nas estruturas político-partidárias, sem vaidade, dando-se generosamente a si e ao seu tempo por quererem poder contribuir para um país melhor. As pessoas que participam nas associações de pais, por quererem tornar as escolas mais acolhedoras aos novos pais e alunos. Quem se senta com pessoas institucionalizadas, dando-se generosamente a si e ao seu tempo. Quem dá colo a quem precisa, quem se senta com quem morre. Os voluntários dos abrigos de animais. As pessoas que dão corpo à sua voz e marcham nas ruas pelas causas. Os dadores de sangue, os dadores de medula. Os bombeiros voluntários. As pessoas que organizam hortas comunitárias. As pessoas que olham pelos vizinhos idosos que moram sós. As famílias que têm tato para organizar encontros e brincadeiras entre filhos, para dar alívio aos pais solteiros e sem rede de apoio. Quem intui nos outros e na sua comunidade algo em falta, e corre para suprimi-la como primeiro impulso.
Não o disse no jantar, mas esta é a elite que eu reconheço, respeito, e admiro, e aquela da qual ambicionava fazer parte. Têm móbeis diferentes, mas formas de agir semelhantes. Invariavelmente são as pessoas da iniciativa humilde, da liderança pelo exemplo, que metem mãos à obra, trocam a mundividência pela humanidade, o consumismo pela entrega, e põem o que apregoam em prática. Em Portugal conheço tantas pessoas que fazem parte desta elite, sem disso fazer gala, as pessoas que praticam a autodisciplina do serviço, e que vêm no sacrifício do seu tempo, dinheiro e descanso, algo tão natural e gratificante como o cansaço físico depois de se ginasticar.
Têm móbeis diferentes, mas formas de agir semelhantes. Invariavelmente são as pessoas da iniciativa humilde, da liderança pelo exemplo, que metem mãos à obra, trocam a mundividência pela humanidade, o consumismo pela entrega, e põem o que apregoam em prática.
No país e no Mundo, desde que há humanidade que há pessoas boas, generosas, dedicadas, que se partilham inteiras sem pedir nada em troca. No turbilhão do mediatismo perde-se muito do eco inspirador que é esta massa humana gigantesca, composta por todas as pessoas que diariamente se dão, nos fóruns mais pequenos (como a sua sala de estar!) aos maiores (como quem se encontra nos assentos do poder internacional para fazer política), dos físicos aos digitais, que tudo fazem por devolver, por acrescentar. No judaísmo este é o valor do Tikkun Olam, reparar o Mundo. No cristianismo parece “apenas” ser a vivência da mensagem de Jesus em pleno.
Nesta sociedade obcecada pela imagem, nunca é de mais perguntar ao espelho: o que andamos nós a fazer pela nossa alma, pelo espírito? Por sermos membros mais inteiros e presentes das comunidades onde participamos? Por ajudarmos mais o irmão, o vizinho, o estrangeiro? O que dizem as nossas ações invisíveis de nós, escondidas da câmara do telemóvel? Se vivemos mesmo os textos bonitos que partilhamos nas redes socias?
Sou otimista: sinto que há cada vez mais pessoas assim, desencantadas pela sedução da fama, pelas tentações do capitalismo extremo e que já deu provas de ser insuficiente. Tenho o privilégio de privar com gerações mais novas, e sei que elas são mais atentas, esclarecidas e dadas, e que brevemente engrossarão os filões desta elite. A elite dos valores vividos, da santidade quotidiana e coerente, a mais nobre e rica, e aquela que me encheria de orgulho ver os meus filhos a pertencer. É uma elite que não precisa de reconhecimento, não gosta de ser vista, mas que também por isso merece ser celebrada todos os dias.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.