O filme A Estrada, de Federico Fellini, devia ser mostrado em todas as escolas, igrejas, oficinas, em todos os escritórios, parlamentos, baldios, em todas as praias e praças do mundo. Se fosse possível organizar uma efeméride dessa escala, tenho a certeza que respiraríamos melhor. Nem que fosse por um único, frágil, momentinho, haveríamos de nos sentir todos mais perto de nós próprios, mais abertos ao mistério de estar vivo, mais à vontade no nosso coração vagabundo. Federico Fellini tem cem anos e continua um miúdo! Quem não acreditar que veja A Estrada, ou Amarcord, O Navio, Oito e Meio, ou Os Palhaços. Sim, este é um daqueles casos em que é bom precisar de ver para crer.
Para quem não sabe, A Estrada conta a história de Zampanò (Anthony Quinn) e Gelsomina (Giulietta Masina), artistas intinerantes. A dada altura, depois de muita viagem, muita palavra por dizer e de uma terrível “gota de água”, o casal separa-se. (Não faz mal contar a história desse mais belo dos filmes — o que acontece em Fellini acontece sempre por outros lados: por baixo ou por cima da história; no alto de uma árvore ou numa praça deserta; na aparição pontual de uma personagem secundária, de uma figura imaginária, de um não-ator; nas noites espessas, maiores do que a vida, construídas na Cinecittà; na luz que, como diz o realizador, é “ideologia, sentimento, cor, tom, profundidade, atmosfera, narração”.) Mas, estava a dizer: o casal separa-se, e passa o tempo. Agora Zampanò trabalha num circo. Numa pausa do seu ofício de rebentar correntes com o peito, vai passear pela terrinha. Até que ouve uma música. À beira da estrada, uma mulher canta a melodia que Gelsomina tocava no trompete. Enquanto pendura a roupa na corda, aquela voz canta a canção genial (composta por Nino Rota para o filme — Nino Rota, que Fellini disse ser o seu colaborador mais precioso, alguém com uma “imaginação geométrica, uma visão musical de esferas celestes”; um músico tão especial que acertava sempre sem ver as imagens). Zampanò reconhece a música e segue-a, e a nossa esperança levanta-se como quem, à janela, tenta espreitar o viandante que regressa de longe. A mulher fala atrás dos lençóis que pendura: uma voz descarnada, música sem instrumento. E, nesse instante, descobrimos que Gelsomina morreu. São assim os filmes de Fellini: lugares onde a inocência, quando morre, não morre completamente — torna-se música.
É esse, parece-me, o segredo da grandeza deste cineasta centenário e tão miúdo, tão traquinas. Federico Fellini! A grandeza do espírito!
Sobre a alma, amigos, não sei nada a não ser aquilo: aquela melodia tão simples, tão bela, aquele trompete que não se ouve mais, aquela voz que cita a velha canção e assim torna presente, de novo, a cara de palhaça de Gelsomina. É um sopro, é o espírito. É esse, parece-me, o segredo da grandeza deste cineasta centenário e tão miúdo, tão traquinas. Federico Fellini! A grandeza do espírito!
Ao falar de “espírito” em Fellini, atenção, não me refiro apenas ao que há de aproximação ao metafísico, ao sagrado, ao que é do mundo das almas. Não digo “espírito” apenas no sentido de “espiritual”, mas também no sentido em que se diz “fazer espírito”, ou que certa pessoa “tem espírito”. Isto é: a graça de uma inteligência viva, a força de um humor caloroso. Tudo isso se mistura em Fellini de um modo inconfundível, simultaneamente nítido e misterioso. Falando de Giulietta Masina, sua mulher e musa, dizia o mestre italiano: “Quando fui com ela aos Estados Unidos, depois de La Strada, as pessoas não sabiam se deviam sorrir-lhe ou beijar-lhe a fímbria do vestido: olhavam-na como a alguém situado a meio caminho entre Santa Rita e Mickey Mouse.” E esse podia também ser um autorretrato do cinema de Fellini — que festejamos este ano, por ocasião dos cem anos do nascimento do realizador, mas que devemos festejar todos os anos, até ao fim dos tempos. Um cinema onde o espírito é uma cara aberta, uma melodia inesquecível, um tio louco em cima de uma árvore a gritar “Voglio una donna!”; um cinema da cena nua, da estrada deserta, e também do excesso, da gargalhada, do delírio; um cinema da anedota e da poesia, um cinema-pintura de imagens-literatura. Um cozido bem temperado onde o humor e o desejo, o sonho e o sagrado se juntam de forma magnífica.
Vivemos no mundo imaginado por Kafka há um século — “posso compreender a hesitação da minha geração, na verdade já não é uma simples hesitação; é o milionésimo esquecimento de um sonho sonhado mil vezes e esquecido mil vezes”, lê-se, por exemplo, em Investigações de um Cão — e ver Fellini é acharmos uma porta para sair desse labirinto. Encontrar um lugar onde inventar o milionésimo primeiro sonho, aquela mil-e-uma-noite sem a qual a vida pode ser uma direção mas não é um sentido. A mulher de Dolce Vita (Anita Ekberg), que entra na Fontana di Trevi como quem entra na sua cabeça; o miúdo de Amarcord (Bruno Lenzi) caminhando pelo nevoeiro como quem viaja no país da alma; a mulher de Julieta dos Espíritos (Giulietta Masina), que não tem história, tem visões; o homem de Oito e Meio (Marcello Mastroianni), que não sabe como fazer o filme dentro do qual vive…
Diz-se do teatro de Tchékhov que é de uma tristeza alegre. Ora, o cinema de Fellini consegue ainda uma outra espécie de milagre: é de uma tristeza feliz. Nas suas figuras, que se colam aos atores que lhes dão corpo e, ao mesmo tempo, ressoam além deles — sugerindo-nos que a vida deve ser enfrentada como um jogo-para-lá-do-mero-viver —, há um desejo de impossível comovente. Isto é, saudoso. Isto é, feliz. Parece-me que, na nossa época de solidões virtuais e confinamentos reais, de mortes debitadas em números e vidas sem a atenção de uma palavra, esta não é uma lição menor.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.