“Como o corpo é um só e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, constituem um só corpo, assim também Cristo. De facto, num só Espírito, fomos todos batizados para formar um só corpo, judeus e gregos, escravos ou livres, e todos bebemos de um só Espírito.” (1 Cor 12,12-13)
Quando São Paulo, na sua primeira carta aos cristãos de Corinto, recorreu ao corpo para explicar a relação dos batizados entre si e com Cristo, criou uma imagem tão simples quanto acertada, naquele tempo como no nosso. De facto, ainda hoje se mantém perfeitamente compreensível esta metáfora paulina que convoca uma eclesiologia de comunhão na qual todos os membros são igualmente importantes, independentemente da sua função.
Este modelo de comunhão radicalmente fraterno e inspirador acabou, no entanto, substituído pelo institucional, que se afirmou a partir do século IV reproduzindo traços e elementos que pertenciam mais ao Antigo Testamento que a Jesus. Esta mudança abrupta de paradigma eclesiológico foi classificada como de “primeira contrarreforma” pelo filósofo Loïc de Kerimel que, no seu livro En finir avec le cléricalisme (Seuil, 2020), interrogou: “Como entender que, apenas dois séculos após a morte de Jesus, a Igreja se tenha empenhado a refazer o que ele dedicara a vida inteira a desfazer: um sistema clerical”?
Contrariando a imagem paulina dos muitos e variados membros unidos no corpo de Cristo, este sistema reduziu-os a dois: clero e leigos. Daqui ao clericalismo, foi um pequeno passo. A Igreja tornou-se numa pirâmide que sacralizou os primeiros, tornando-os membros separados e acima dos restantes.
Contrariando a imagem paulina dos muitos e variados membros unidos no corpo de Cristo, este sistema reduziu-os a dois: clero e leigos. Daqui ao clericalismo, foi um pequeno passo. A Igreja tornou-se numa pirâmide que sacralizou os primeiros, tornando-os membros separados e acima dos restantes. O funcionamento deste sistema dual foi explicado de forma bem clara por Leão XIII em 1895: “Na Igreja de Deus distinguem-se, da forma mais absoluta, duas partes: a parte ensinada e a parte ensinante, o rebanho e os pastores. Só aos pastores foi dado o poder de ensinar, de julgar e dirigir; aos fiéis é imposto o dever de seguirem os seus ensinamentos, de se submeterem com docilidade aos seus juízos e de se deixarem governar por eles. É nesta subordinação e dependência que assentam a vida e a ordem da Igreja.” (Carta Epistola Tua ao Arcebispo de Paris)
Este modelo eclesiológico resistiu durante séculos com a ajuda de um contexto histórico favorável e de uma estrutura social completamente distinta da atual, onde predominavam o analfabetismo e a superstição. É apenas neste quadro que se compreende que São João Crisóstomo tenha afirmado que “do mesmo modo que há diferenças entre os animais selvagens e os homens razoáveis, tão grande é, e eu não exagero, a distância entre o pastor e as ovelhas.” (Sobre o sacerdócio II, 2, Sources chrétiennes 272, p. 105-106)
Mas hoje tudo é diferente e as ovelhas já não são animais selvagens. Nesse sentido, como bem adverte D. Eric de Moulins-Beaufort, arcebispo de Reims e presidente da Conferência Episcopal Francesa, a Igreja não pode continuar a agir “como se os seres humanos fossem crianças que devem ser seguradas pela mão. Esse é o modo como a Igreja funcionou no passado. Isso não é mais possível numa sociedade onde uma maioria das pessoas tem formação superior.”
Num tempo em que tantos são reconhecidamente letrados e qualificados, não deveria ser possível continuar a olhar para os leigos como meros leigos, nem continuar a agir como se a ordenação sacerdotal tornasse automaticamente as pessoas em especialistas em tudo aquilo que a vida da comunidade cristã envolve.
Num tempo em que tantos são reconhecidamente letrados e qualificados, não deveria ser possível continuar a olhar para os leigos como meros leigos, nem continuar a agir como se a ordenação sacerdotal tornasse automaticamente as pessoas em especialistas em tudo aquilo que a vida da comunidade cristã envolve.
Como refere o padre jesuíta James Keenan, “pelo sacramento da Ordem, um padre ou um bispo não se torna mais capaz de liderar um ofício, uma paróquia, um departamento de uma Conferência Episcopal, uma conferência estadual ou nacional, uma confraternidade, uma organização não governamental católica, um dicastério ou uma Congregação. O clero não ganha tal competência por meio da Ordem.” Ou seja, “quando se trata da competência para a liderança, o sacramento não dá às pessoas aquilo que elas não têm.”
A mesma opinião é partilhada pelo padre e teólogo Marcello Neri, que afirma que ainda se vive na Igreja “dando a impressão que o padre pode fazer tudo, em prejuízo da qualidade e da preparação com que as faz, em virtude da sua ordenação.” Por este motivo, “até hoje ainda não conseguimos encontrar uma maneira de superar o «clerocentrismo» na vida das nossas paróquias, onde o padre é a referência de tudo”, apesar de que frequentemente “se encontra a realizar funções que não lhe são próprias e para as quais não está devidamente preparado.”
Não se compreende, por conseguinte, o sentido da recente instrução A conversão pastoral da comunidade paroquial ao serviço da missão evangelizadora da Igreja, publicada pela Congregação para o Clero no passado mês de junho. O documento até apresenta um título prometedor e os primeiros capítulos enunciam uma série de boas intenções e princípios na linha do Papa Francisco, incluindo a citação, logo no nº5, do seu sonho com “uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à auto-preservação.” No entanto, a partir do capítulo VII o documento adota em contracorrente um estilo doutrinário e canónico, transformando-se num registo normativo que cita o Código de Direito Canónico em quase metade das suas 183 notas. “Ou seja, abunda visão jurídica, falta visão pastoral, teológica, bíblica e espiritual.”
Isso não seria necessariamente mau se este documento tivesse surgido integrado num levantamento da situação atual, primeiro passo fundamental quando se procuram respostas novas aos desafios que o nosso tempo tem trazido à vida paroquial. Mas não é disso que se trata. O que se afigura como principal preocupação da instrução não é a necessária e já tardia conversão pastoral, mas a preservação do tradicional modelo paroquial centrado no pároco e dos processos de liderança e decisão exclusivamente nas suas mãos.
O que se afigura como principal preocupação da instrução não é a necessária e já tardia conversão pastoral, mas a preservação do tradicional modelo paroquial centrado no pároco e dos processos de liderança e decisão exclusivamente nas suas mãos.
O receio com o papel dos leigos nas paróquias é evidente, a ponto de se recomendar, para que não surjam entendimentos exagerados, que se evitem associar a leigos expressões como “confiar o cuidado pastoral de uma paróquia” ou “presidir a comunidade paroquial”, que se reafirma poderem apenas se referir ao “ministério sacerdotal, que compete ao pároco.”(96) Já discernir sobre as reais competências de cada um parece ser irrelevante.
De igual modo, recorda-se que os leigos “podem pregar numa Igreja ou num oratório”, mas “não podem em nenhum caso proferir a homilia durante a celebração da Eucaristia”(99), não se permitindo sequer que a comunidade possa discernir se essa possibilidade será para o seu maior bem. E se a comunidade eventualmente reconhecer num dos seus membros a vocação para “ministro extraordinário”, isso não será suficiente, pois apenas a “autoridade competente” poderá atribuir-lhe essa denominação.(96)
Nesta instrução constata-se que em primeiro lugar se encontra a afirmação da distinção e superioridade do ministério sacerdotal. Quanto ao discernimento feito pela comunidade ou o que mais pode ajudar à sua edificação é claramente secundário.
Não surpreende, por isso, que fiquem impedidos os governos sinodais e partilhados nas paróquias, bem como “devem-se evitar denominações como «equipa guia» ou outras semelhantes que pareçam expressar um governo colegiado da paróquia.”(66)
Nesta instrução constata-se que em primeiro lugar se encontra a afirmação da distinção e superioridade do ministério sacerdotal. Quanto ao discernimento feito pela comunidade ou o que mais pode ajudar à sua edificação é claramente secundário.
Quanto aos conselhos paroquiais, devem manter-se como órgãos meramente consultivos, e, para que não haja confusões hierárquicas, faz-se questão de dizer que “é bom recordar que o pároco não está incluído entre os membros do Conselho para os Assuntos Económicos, mas o preside.”(102) Já sobre o Conselho Pastoral considera-se que, para que “possa ser eficaz e profícuo, é necessário evitar” que o pároco seja “apenas um dos membros.”(113) Dificilmente se teria conseguido uma formulação mais distante da metáfora paulina…
Em tudo e sempre, é o pároco quem tem de presidir e tomar todas as decisões. É ele e só ele o administrador dos bens da paróquia (67), é ele e só ele que dirige, coordena, modera e governa a paróquia (89). A visão deste documento é tão clerical que, na falta de um sacerdote, prefere-se desde logo um diácono a um leigo na gestão do cuidado pastoral (90), independentemente dos verdadeiros talentos de um e outro.
Com esta instrução, a Congregação para o Clero fez, de facto, jus ao seu nome. E com ela manifestou um total desinteresse pelas reais capacidades e qualificações dos leigos, ao mesmo tempo que confirmou que ainda vê o sacramento da ordem como um gerador automático de lideranças e competências. Será assim que se combate o clericalismo, como tanto tem pedido o Papa Francisco?
Felizmente, há exemplos de paróquias e até dioceses que contrariam esta conceção de Igreja. Os casos mais conhecidos encontram-se em países como a Alemanha – o que deu origem a críticas vigorosas de vários bispos e outros responsáveis católicos alemães contra a instrução -, ou a Suíça, onde se encontram equipas de leigos responsáveis por paróquias ou mulheres com cargos de responsabilidade delegada pelo bispo.
Para o padre Tiago Freitas, autor da tese Colégio de Paróquias – Um proto-modelo crítico para a paróquia da Europa Ocidental em tempo de mobilidade, sobre novos modelos de paróquias, esta instrução não é mais do que uma oportunidade perdida, pela falta de atenção aos desafios da evangelização. Segundo este padre bracarense, “o único foco que aqui vejo é a figura do pároco e a liderança nas paróquias”, em detrimento de qualquer forma de “empoderamento” dos leigos ou de “governo colegial”, quando “não há razão objetiva para que os leigos não possam cooperar ou participar num real governo das paróquias.”
Também para o padre João Alves, da diocese de Aveiro, a questão que verdadeiramente motivou a instrução é que, apesar da falta de padres, “os leigos, diáconos e religiosos não façam o que eles fazem…” Demonstrou-se, assim, “uma clara falta de ousadia em refletir o verdadeiro problema: em vez de promover uma reflexão sobre o perfil do padre, encontram-se alternativas que são chamadas de atenção caducas e antigas.”
Reflexão pedida, inclusive, por muitos padres, como Paolo Cugini, da diocese de Reggio Emilia (Itália), que, entre outras possibilidades, sugere que as lideranças da comunidade possam ser escolhidas pela própria a partir daqueles que têm o seu carisma reconhecido pela própria comunidade.
Igualmente interessante é a meditação do teólogo beneditino Ghislain Lafont sobre a identidade e o papel do sacerdote nos nossos dias, desenvolvida na sequência da Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus (2018). Na sua análise deparou-se com uma questão deveras pertinente: para se ordenar um leigo como diácono é necessário que este seja viri probati, ou seja, um homem com provas dadas. No entanto, para a ordenação sacerdotal esta exigência não se coloca, o que o levou à interrogação: “Podemos considerar como viri probati jovens que, na verdade, ainda não vivenciaram tais provas: nem a de uma vida conjugal séria, nem de uma vida profissional sólida, nem de compromissos na cidade no plano político, social e associativo? Dito de outra forma, eles são ordenados apenas com base numa formação recebida no seminário, que hoje é voltada (mas só hoje) às dimensões humanas da personalidade. Mas uma formação não torna um homem formado: somente o tempo permitirá saber se o homem está realmente formado.
Existem excelentes percursos de formação que, por diferentes razões, falharam e esse ou aquele homem não correspondem, em última análise, às esperanças ligadas à qualidade da formação. Por que deveria ser diferente para o presbiterado?
Existem excelentes percursos de formação que, por diferentes razões, falharam e esse ou aquele homem não correspondem, em última análise, às esperanças ligadas à qualidade da formação. Por que deveria ser diferente para o presbiterado? Não seria melhor atrasar a ordenação até o momento em que o vir (não mais o juvenis) tenha se revelado probatus?” Questões significativas e incontornáveis para quem deseja respostas novas e adequadas aos desafios atuais, mas nem sequer esboçadas pela Congregação para o Clero numa instrução que claramente resiste a possibilidades novas.
A citação do sonho do Papa Francisco no começo da instrução acaba, portanto, por se tornar irónica. Se naquele ponto se refere que tudo pode ser transformado – incluindo a estrutura eclesial -, logo se conclui que não é bem assim. Quase a terminar, a instrução faz questão de lembrar que há toda uma “normativa canónica que estabelece as possibilidades, os limites, os direitos e os deveres de pastores e leigos.”(123) Assim circunscritas, as possibilidades de renovação pastoral ficam reduzidas a pouco ou quase nada. Percebe-se então que, para a Congregação do Clero, dizer que tudo pode ser transformado significa, na realidade, que nada de substancial deve efetivamente mudar. Não teria, então, o título da instrução ganho bastante mais rigor se tivesse citado Giuseppe Tomasi di Lampedusa, limitando-se a um “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.