Três neutralidades e a defesa da paz justa

Os líderes e os seus porta-vozes declaram-se a favor da paz na Guerra na Ucrânia, como se se tratasse de uma categoria político-moral absoluta.

E. H. Carr, no seu pequeno livro de 1945, Nationalism and After fez-nos saber que, depois da II Guerra Mundial, a neutralidade, enquanto posicionamento em política internacional é, quanto muito, uma ilusão. Podíamos dizer que o argumento está datado, que escrever na transição da II Guerra Mundial para Guerra Fria é uma coisa e que, sobre o mundo de hoje, é outra.

Mas não é bem assim: o mundo de hoje também transita, e o argumento de Carr continua a ter validade, quase 80 anos depois. A neutralidade não só não existe per se, como no momento que estamos a atravessar – em que a Rússia invade a Ucrânia para fins revisionistas e os Estados Unidos e a China cerram fileiras no que pode bem vir a ser uma nova Guerra Fria –, portanto, uma ação de um estado é sempre interpretada, pelas grandes potências, como uma tomada de decisão a favor de um dos lados da contenda. Regra geral, o outro.

Além disso, a neutralidade e o não-alinhamento proclamado por um conjunto de estados têm servidos três propósitos políticos.

O primeiro tipo fica bem patente na posição chinesa relativamente à Guerra na Ucrânia. Como disse Evan Medeiros, da Universidade de Georgetown, trata-se de uma neutralidade pró-russa. Desde o início do conflito que Pequim se posiciona ao lado de Moscovo, permitindo-lhe um não-isolamento político e uma porta para o comércio internacional. O não-alinhamento fictício tem permitido à China submeter a Rússia à sua vontade e emparceirar-se com Moscovo para debilitar aquilo que ambos chamam a “hegemonia americana”, com o objetivo de implementar uma ordem onde Pequim não tem contestação. Por enquanto, na China, usa-se o termo “ordem multipolar” para acomodar a Rússia e outras médias potências. Mas não será necessária assim no longo prazo.

Desde o início do conflito que Pequim se posiciona ao lado de Moscovo, permitindo-lhe um não-isolamento político e uma porta para o comércio internacional. O não-alinhamento fictício tem permitido à China submeter a Rússia à sua vontade e emparceirar-se com Moscovo para debilitar aquilo que ambos chamam a “hegemonia americana”, com o objetivo de implementar uma ordem onde Pequim não tem contestação.

O que nos leva ao segundo tipo, a neutralidade interessada, bem ilustrado pela posição brasileira. Lula da Silva tem uma agenda política concreta: quer elevar o estatuto brasileiro na política internacional e fá-lo através de duas vias. Por um lado, declara “neutralidade” relativamente ao conflito europeu, para tentar encontrar um papel de mediador (impossível para quem não se envolveu, direta ou indiretamente no conflito), e por outro, e principalmente, como forma de alinhamento disfarçado com Pequim. A neutralidade brasileira não é mais do que alinhamento com a China, mesmo que à custa de uma derrota ucraniana.

A neutralidade brasileira não é mais do que alinhamento com a China, mesmo que à custa de uma derrota ucraniana.

Finalmente, um conjunto alargado de países menos poderosos, encontram-se em fase de neutralidade expectante, lendo a transição de poder em curso como uma oportunidade de reforma do sistema que possa beneficiá-los. Assim esperam, tentando perceber para que lado cairá o poder e que potência mais os favorece, a nível económico e político.

As três neutralidades – ou seja, o uso do conceito de neutralidade para fins políticos – têm um traço em comum. Os líderes e os seus porta-vozes declaram-se a favor da paz na Guerra na Ucrânia, como se se tratasse de uma categoria político-moral absoluta. Segundo esta linha de pensamento – que começa a ganhar força no Ocidente – há necessariamente uma dicotomia de legitimidade, em que os estados que apoiam Kiev saem deste retrato simplista diminuídos. Na verdade, o que procuram é uma paz adjetivada de “justa”, mas isso pouco diferença parece fazer.

Segundo esta linha de pensamento – que começa a ganhar força no Ocidente – há necessariamente uma dicotomia de legitimidade, em que os estados que apoiam Kiev saem deste retrato simplista diminuídos. Na verdade, o que procuram é uma paz adjetivada de “justa”, mas isso pouco diferença parece fazer.

Não tem existido neutralidade. A figura do não-alinhamento tem servido aos países, especialmente no Hemisfério Sul, para se perfilarem junto da China e da Rússia, alegando que não se alinham com ninguém. Tem também servido para tentarem ter um papel internacional na Guerra da Ucrânia naquilo a que chamam “o sentido da paz”.

Estes dois equívocos devem ser desfeitos. Cada estado tem o direito de defender o que quiser, valores e interesses incluídos; de se alinhar com quem quiser (especialmente em momentos como este, de transição de poder); e de usar os argumentos que bem entender para justificar as suas escolhas. Mas é preciso clarificar que a paz, em si só, não significa mais do que parar as hostilidades, deixando por clarificar o cenário que se segue ao final do soar das armas. Bem melhor a posição ocidental que sacrifica o bem-estar das populações por um futuro justo na Ucrânia (e pela sua própria segurança a longo prazo) do que a de estados que utilizam a ideia de paz ucraniana, com a qual objetivamente não estão preocupados, para cumprir as suas agendas políticas.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.