Texto feito pelo seu cérebro

A ficção não será útil no sentido em que uma chave de fendas ou um computador são úteis, mas serve para muitas coisas. Desde logo, para dar, ou para “ir dando”, sentido ao mundo.

Os episódios de Phineas e Ferb têm todos a mesma história: os dois irmãos que dão título à série vão construir alguma coisa impossível no quintal; a irmã Candace vai tentar apanhá-los, denunciando-os à mãe, e vai falhar; Perry, o ornitorrinco de estimação da família, desaparecerá para se transformar em Agente P e vencer o cientista-vilão Heinz Doofenshmirtz; este construirá uma máquina, um “inator”, com o propósito de “conquistar toda esta área”, e fracassará terrivelmente. Todos os episódios têm momentos musicais, há frases que se repetem como refrões (“Ei, onde é que está o Perry?” é talvez a mais célebre), as personagens são donas de uma esperteza meta-narrativa (que permite a Candace gritar no genérico, “Mãe, o Phineas e o Ferb cantaram a canção de abertura!…”) mas também sabem sofrer como se nem suspeitassem que há uma tal de “quarta parede” ou ecrã de televisão. Simplificando, trata-se de uma epopeia de quintal: como é que o universo inteiro pode caber nas traseiras de uma casa normalíssima. Em Phineas e Ferb tudo é sempre igual e nunca nada é aborrecido. A série segue a regra da comédia— onde não interessa tanto a história, no sentido de um caminho que dá a ver uma “transformação”, mas mais a peripécia, no sentido de uma coleção de momentos capaz de nos surpreender com uma “confirmação” — e todos os truques conhecidos, e é uma maravilha, uma maravilha, uma maravilha.

Somos animais racionais, filosóficos, com certeza, e espirituais, sem dúvida, mas também somos animais ficcionais. A ficção não será útil no sentido em que uma chave de fendas ou um computador são úteis, mas serve para muitas coisas. Desde logo, para dar, ou para “ir dando”, sentido ao mundo. Por um lado, como retrato indireto do nosso tempo — muitas vezes, percebemo-nos melhor quando somos surpreendidos por uma imagem distanciada de nós próprios, qual personagem descobrindo-se careca no espelho do barbeiro —, por outro, como síntese, estilização, de diversas inquietações que se cruzam e confundem. A série Phineas e Ferb, de Dan Povenmire e Jeff “Swampy” Marsh, cumpre alegremente esses dois requisitos.

 

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Mas Phineas e Ferb é também um clássico instantâneo e uma espécie de introdução à pós-modernidade que abre mil questões e referências

Sim, trata-se de uma série de desenhos animados, uma série “para miúdos”. Mas Phineas e Ferb é também um clássico instantâneo e uma espécie de introdução à pós-modernidade que abre mil questões e referências. Trata-se, a bem ver, de um estudo sobre a nossa época. Um breve curso com mais de cento e trinta episódios. Hoje vamos concentrar-nos num único, chamado, nem mais nem menos, “Esta é a tua história”.

Phineas e Ferb (Phineas é o que tem a cara em forma de triângulo, Ferb é o que quase não fala) estão no quintal a jogar pingue-pongue. Mas Candace sabe que não pode ser só pingue-pongue. Não tarda nada, os irmãos hão de fazer alguma coisa impossível e, nessa altura, ela estará pronta para os denunciar à Mãe. Mas… “Ei, onde é que está o Perry?” Era exatamente aqui que eu queria chegar:

Entretanto, Perry transformou-se em Agente P e partiu para combater o plano maléfico, seja ele qual for, de Heinz Doofenshmirtz. Mal chega à torre do cientista-vilão, este prende-o à cadeira de uma sala de espetáculos para assistir ao seu número. Heinz senta-se no palco e põe na cabeça uma máquina de extração de memória. Ao seu lado, o robô do cientista, que se chama Aníbal, cumpre o papel de apresentador anunciando um “programa de televisão feito pelo seu cérebro!”. À medida que Doofenshmirtz se lembra do seu passado patético-traumático, vai subindo numa maquineta do tipo “Preço Certo” o “nível de dor emocional” do cientista — quando chegar ao máximo, o “inator” deste episódio usará a dor acumulada para fazer dele um monstro invencível. O trauma condensado pela máquina transformará o corpo daquela vida num monumento ao mal.

Não contarei como é que a coisa se resolve (conseguirá Perry-Agente P vencer este Heinz-Monstro-das-Más-Memórias? E será esta a primeira vez que Phineas e Ferb não fazem uma coisa impossível no quintal?), mas quero aproveitar esta espécie de parábola em forma de desenho animado para falar de memória e imaginação, e como as duas andam ligadas. Vivemos numa época que, se permite alegrias inteligentes como Phineas e Ferb, também parece permitir-nos cada vez menos tempo para construir memórias. O famoso tempo de “não fazer nada”, anteriormente conhecido como “ócio criativo”, é uma instituição em vias de extinção. Mas, sem memórias, como é que podemos imaginar? Esta época que nos calhou na rifa — e também que vamos definindo, em conjunto, através de mil, milhões, de pequenos gestos — parece exigir que nos tornemos profissionais de nós próprios. Vidas organizadas de forma a não haver “tempos mortos”; de forma a que cada atividade, cada aprendizagem, cada segundo, seja “funcional” e cumpra um “objetivo específico”. Ora isso cria dias demasiado literais, em que (se me é permitido um pequeno excesso de linguagem) já nem conseguimos imaginar o que está à nossa frente. Como reciclar em sonho as memórias que não temos? Como regressar ao futuro, se estamos amarrados a um presente frenético onde viver se assemelha a uma cadeia de montagem de “programas e atividades”? Um calendário desenhado com as melhores intenções, mas que pode acabar por nos impedir o acesso ao nosso próprio mistério. Receio não ter uma grande tese sobre o assunto, queria só lançar algumas questões. Mas interrompo-me já, que tenho de ir ali à sala jogar basquetebol invisível com a criançada cá de casa. “Penso, logo existo”? Pois, claro que sim, mas também: imagino, logo sou.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.