Vejo-a quase todos os dias. Umas vezes enrolada no saco cama que lhe serve de abrigo, outras sentada sobre ele. Tem o corpo franzino, um olhar triste, mas está quase sempre a ler ou a escrever num pequeno caderno, com gestos precisos e um olhar concentrado. A forma como se agarra a cada livro mostra-me que ainda não desistiu. E faz-me pensar, enquanto desço a rua, se teremos nós desistido dela.
Levo pela mão a minha filha que, com cinco anos, não sabe ainda entender como pode alguém ter por casa aquele chão duro sem tecto. Ela ainda não aprendeu a desviar o olhar e por isso confronta-me e pergunta-me. Porquê?
Não lhe posso responder sem lhe falar da sorte ou da falta dela. É fundamental que ela perceba que muito do que nos separa de quem nada tem é sorte. Devíamos recuperar a ideia do acaso, encarar de frente a forma como cada um de nós tem, no momento em que nasce, circunstâncias especiais que poderão determinar para sempre a nossa história. Pensar no peso que tem a sorte e o privilégio humaniza-nos.
É fundamental que ela perceba que muito do que nos separa de quem nada tem é sorte. Devíamos recuperar a ideia do acaso, encarar de frente a forma como cada um de nós tem, no momento em que nasce, circunstâncias especiais que poderão determinar para sempre a nossa história. Pensar no peso que tem a sorte e o privilégio humaniza-nos.
Vivemos encantados pela ideia do mérito. Dizem-nos que se nos esforçarmos o suficiente não teremos limites ao que podemos alcançar. Essa é uma promessa irresistível. Mas é também um engano. Não partimos todos do mesmo lugar. E, se é certo que alguns conseguem superar obstáculos que pareciam intransponíveis, esses serão a incrível excepção. Não a regra.
O problema de ver no mérito um valor absoluto capaz de derrubar as desigualdades é a forma como essa visão corrói a noção de solidariedade. Deixamos de nos ver como iguais e passamos a dividir as pessoas segundo uma hierarquia de valor que confunde as conquistas materiais com o mérito.
Acreditamos que os vencedores merecem o que têm, porque se esforçaram, e deixamos de lhes exigir que encontrem formas de compensar os perdedores. Mas fazemos mais e pior: vemos quem nada tem como culpado do seu infortúnio. Os pobres passam a ser preguiçosos, que não estudaram ou trabalharam o suficiente e, por isso, também eles têm aquilo que merecem.
Mas fazemos mais e pior: vemos quem nada tem como culpado do seu infortúnio. Os pobres passam a ser preguiçosos, que não estudaram ou trabalharam o suficiente e, por isso, também eles têm aquilo que merecem.
A noção de mérito está hoje instalada no discurso político. Está presente quando questionamos os impostos que devem servir para redistribuir a riqueza ou quando discutimos os critérios que devem ser tidos em conta para atribuir determinados apoios públicos aos mais desfavorecidos.
O mérito tornou-se na medida de todas as coisas e fez-nos esquecer a ideia de que uma sociedade é tão mais justa quanto mais for capaz de diminuir a desigualdade. O mérito torna a desigualdade num efeito secundário indesejável mas aceitável de uma sociedade de indivíduos em competição sem verdadeiros laços de comunidade.
A forma como esta ideia deslassou a sociedade aumentou o ressentimento dos que se sentem deixados para trás, dos que apesar de todo o trabalho e esforço continuam a sentir dificuldades. A inflação e a crise na habitação estão a tornar mais altos os obstáculos que temos de enfrentar para ter uma vida digna. Cada vez mais, fica evidente para muitos que trabalhar e esforçar-se não chega.
Há 2,8 milhões de portugueses que ganham menos de mil euros. Trabalham, esforçam-se, mas dificilmente conseguirão, sem um enorme equilibrismo, pagar a renda da casa, a comida na mesa, o transporte para chegar ao trabalho. Para eles, qualquer problema de saúde poderá ser um susto, qualquer imprevisto um drama. Não são poucos e não são preguiçosos. Não têm aquilo que merecem.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.