Faz hoje treze horas e nove minutos que recebi um WhatsApp de uma amiga. Dizia ela: «Uma criança com uma venda consegue ser tão audaz como uma criança sem ela». Não pude perceber, ao ler estas palavras, se aquilo que sentia se assemelhava mais ao perfume enigmático de um mistério maior, ou ao embate de um martelo sobre uma bigorna; mas foi-me evidente que não leria – e não li – coisa mais bela hoje. Não sei se decidi ou se as forças da natureza decidiram por mim que tinha de escrever alguma coisa sobre o assunto. O mundo precisava de saber! E, se mais ninguém o fará, eu mesmo o farei – e eis que o faço.
«Uma criança com uma venda consegue ser tão audaz como uma criança sem ela». Estas palavras são um verdadeiro paradoxo, cuja solução – se alguma solução me posso atrever a propor – é que uma criança não precisa de olhos para ver. E isto não é apenas um facto, mas propriamente uma definição: criança é aquele que não precisa de olhos para ver. Dito de forma um pouco mais poética: se uma criança visse com os olhos, deixaria de ser criança.
Podemos tentar perceber como, então, vê a criança, mas nunca teremos sucesso. É que nós, para o bem e para o mal, já abrimos os olhos, e não podemos deixar de achar que o pobre rebento humano é que ainda não viu o mundo como ele verdadeiramente é – e aqui está a falácia. Do simples facto – mais infortúnio do que sorte – de termos aberto os olhos, não se segue de forma alguma que vejamos o mundo como «é verdadeiramente». Podemos falar de formas geométricas e disposições geográficas, composições químicas ou normas físicas, mas estaremos muito longe do centro da questão, porque um mundo é muito mais do que isso (se é que chega sequer a ser um pouco disso). E o motivo pelo qual defendo que ver o mundo com os olhos é a forma errada de o ver é simplesmente que, vendo com dois olhos, veremos sempre dois mundos, ou pelo menos um mundo a dobrar.
«Onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração», diz o Senhor; mas nós espalhamos o nosso tesouro por toda a cidade. Pusemos um bocado na família e outro bocado nos amigos; um pedaço no trabalho e outro pedaço no lazer; um pouco nos filmes e outro tanto na vida interior.
O mundo das crianças tem fadas, mas é o nosso mundo que é enfadonho; a criança caminhará tão audaz vendada ou de olhos abertos, e nós andaremos tão enfadados com ou sem venda. A cada cinco minutos temos uma coisa nova para fazer, um novo local onde colocar o coração; não nos surpreendamos quando, ao fim do dia, o tivermos espalhado por aí. «Onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração», diz o Senhor; mas nós espalhamos o nosso tesouro por toda a cidade. Pusemos um bocado na família e outro bocado nos amigos; um pedaço no trabalho e outro pedaço no lazer; um pouco nos filmes e outro tanto na vida interior. E, além disso, por termos sempre que fazer daqui a cinco minutos, nunca temos nada que fazer daqui a dez anos; por levarmos os olhos bem abertos a guardar os próprios pés, não sabemos que direcção tomar ao fim da rua. Quando formos dormir e dermos conta do nosso estado, não só teremos o coração fragmentado um pouco por toda a cidade – e nunca inteiro em lado nenhum –, como também o teremos cativo a cada pequena morada – e nunca livre para amar nenhuma delas. O coração é um músculo que serve para ver; quando abrimos os olhos, deixámos de o exercitar.
Mas com as crianças não é assim. Não seja ingénuo, caro leitor, argumentando levianamente que o seu mundo é mais simples, mais livre de preocupações. O “mundo das crianças” é o mesmo que o nosso, cheio dos mesmos perigos, que as crianças vivem também: a capuchinho-vermelho, ao falar com o lobo, sofreu do mal da ignorância; a Margarida e o Joãozinho, presos na casa de doces, padeceram o desespero; a Cinderela suportou uma inimaginável solidão; Edmund, depois de trair Aslan, soube o que eram remorsos; Frodo passou o limite da exaustão; Telémaco aguentou o desprezo dos seus vizinhos; e até Antígona pereceu o mais alto nível de injustiça. É que o mundo das crianças tanto tem fadas como lobos – e muito provavelmente tem bruxas e madrastas; mas, ainda assim, embora alguns tenham levado a mão à venda, nenhum chegou a abrir os olhos.
Quando formos dormir e dermos conta do nosso estado, não só teremos o coração fragmentado um pouco por toda a cidade – e nunca inteiro em lado nenhum –, como também o teremos cativo a cada pequena morada – e nunca livre para amar nenhuma delas.
Se nos pudermos fiar em J.R.R. Tolkien, a particularidade dos contos-de-fadas não é mencionar ou não as ditas fadas, mas o facto de suceder na terra encantada onde estas habitam. A antiga Atlântida talvez tivesse tecnologia fenomenal, mas certamente não tinha nenhuma Sininho, e, embora houvesse uma na Terra do Nunca, não a encontraremos na casa da avó ou no fondue de chocolate onde vivia a bruxa. O que todos estes locais tinham em comum é que, por muito que aparentassem ser aqui ao pé, na floresta mais à mão, ficavam lá longe, onde só o poder de um feiticeiro muito poderoso nos poderia levar. Percebemo-lo, aliás, porque todas essas histórias têm um ingrediente em comum, mais fantástico do que secreto: magia. Para Tolkien, essa magia é o factor determinante de um conto-de-fadas; e, tanto quanto posso ver, dela emana a audácia das crianças.
A nossa vida tem muitos horários e afazeres, preocupações e atividades; a pouco e pouco, isto vai nos fragmentando e prendendo o coração. Mas não tem que ser assim – tanto que no país das fadas não é. Tudo o que Rapunzel pensava era em içar o seu príncipe amado; a mãe dos sete cabritinhos não vivia senão para resgatar os filhos da barriga do lobo; a única missão do pequeno Artur era arrancar aquela espada viva daquela pedra morta; a princesa daquele país trocou o palácio pela floresta e devotou toda a sua vida a resgatar os doze irmãos; o pequeno David devia combater um só filisteu. Os contos-de-fadas são histórias que nos unificam o coração; e fazem-no porque, em vez de um dia compartimentado e louco, encontraremos, nas mesmas páginas, um dragão e um herói, uma princesa e um tesouro, uma família e uma aventura, um cobarde e um feitiço inquebrável. A mesma narrativa falar-nos-á de perigo e esperança, ignorância e carinho, flores e bolos, avós e lobos. No mesmíssimo livro encontraremos tudo aquilo por que anseia o nosso coração. E, havendo-o unido, poderemos ver de novo.
Nesse sentido, os contos-de-fadas servem como analgésico, combatendo os sintomas de termos abertos os olhos; mas o remédio não fica por aí. Além de histórias que nos unificam o coração, os contos-de-fadas são histórias que nos ensinam a observar o mundo. É uma questão de lógica que, se é por meio da magia que as crianças vêem o mundo de olhos vendados, então a magia existe. E dá-se um fenómeno interessantíssimo: à medida que fechemos o primeiro olho, tremendo de medo que o Salgueiro Zurzidor destrua o carro do Sr. Wesley, começaremos a acreditar que é a magia que sustenta o mundo. Os contos-de-fadas não só anestesiam o mal de termos aberto os olhos, nem se limitam a cerrar-nos o primeiro olho: mostram-nos como seria o mundo se fechássemos o segundo. Quando pudermos ver através do fantástico do mundo das fadas, observando o monótono, encontraremos a magia do lado de cá do papel.
Neste sentido, devo um pedido de desculpas ao leitor por algo que disse num outro artigo. Caí na heresia de escrever que, talvez, ao menos neste mundo, as fadas não existissem – e a verdade é que existem mesmo. Numa primeira leitura talvez salte mais à vista que aqueles sapatos de cristal eram mágicos e foram trazidos por pássaros que sabiam falar; mas, quando repararmos o quão razoável é que só servissem ao pé para que foram feitos, encontraremos fadas em qualquer sapateiro do nosso planeta. Eu próprio as encontrei numa torre de uma igreja, faz hoje uns quatro ou cinco dias, e, desde que reli A Bela e o Monstro, suspeito que as haja também num jardim cheio de rosas que tenho aqui ao pé de casa.
Uma releitura consciente de João e o Pé-de-Feijão, por exemplo, ajudar-nos-á – quando superarmos o impacto do fantástico que é trepar um feijoeiro até ao céu – a descer à terra para encontrar, no branco das nuvens, as cores dos palácios dos gigantes, e, na monotonia das sementes, as maravilhas dos ovos de ouro – porque, afinal, também no país das fadas os feijoeiros se plantam com feijões. Ler sobre esses mundos fantásticos de lá e encontrar neles a mesma monotonia de cá é o primeiro e derradeiro passo para viver neste mundo monótono de cá e encontrar a magia de lá. Com essa magia – e como que por magia – este mundo tornar-se-á mais simples e íntegro, menos fragmentado. É certo que terá um “senão”, uma condição, um preço a pagar: encontrar-nos-emos como estranhos diante do nosso próprio mundo, espantados por não lhe pertencermos mais. Terá de ser assim, porque, vendo enfim de olhos vendados, veremos o mundo pela primeira vez.
Enfim, não quero parecer demasiado ingénuo. Talvez tenhamos de continuar a beber do veneno que temos bebido até hoje; nesse caso, ainda assim, a única atitude sensata será tomá-lo juntamente com o antídoto. «Uma criança com uma venda consegue ser tão audaz como uma criança sem ela» – e já lá vão trinta e oito horas e vinte minutos. Talvez essa audácia nos permita voar à Terra do Nunca, ou quiçá, pelo contrário, seja a Terra do Nunca que nos dê essa audácia. Não sei se é a magia que dá visão às crianças, ou se a magia é que as crianças vejam; o que sei – e essa é a parte importante – é que ainda não é tarde demais para reaprender, pondo um fim à divisão, a visão audaciosa das crianças.
Rogo-lhe, portanto, querido leitor, que, ao menos no próximo baile ou da próxima vez que for levar marmelada à avó, não se esqueça de fechar os olhos. Mas, pelo caminho, atenção: tenho a certeza que há fadas naquele jardim.
Fotografia – Jr Korpa – Unsplash
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