«Stôr, é obrigatório?»

Para que as nossas crianças e jovens cresçam em autonomia e na capacidade de fazerem escolhas responsáveis, deveríamos incentivar, na família e na escola, situações em que possam treinar escolher por elas próprias.

Nas minhas aulas, sobretudo com os alunos mais novos, ao propor um trabalho de casa (TPC), havia sempre alguém que me perguntava: “Stôr, é obrigatório?” A pergunta era feita, em parte porque a disciplina que eu ensinava, Educação Moral e Religiosa, era uma disciplina menos importante e todos o sabiam. Por outra parte, insistia com os alunos que os TPC eram importantes, sobretudo para solidificar, aprofundar e preparar a aula seguinte. Havia ainda uma variante desta pergunta: “Stôr, conta para a nota?” No fundo, queria dizer a mesma coisa. Tentava muitas vezes pedir TPC’s em forma de tarefas, que fossem motivantes para os alunos. Porém, aquela pergunta se o trabalho era “obrigatório”, ou se “contava para a nota”, tinha sempre o efeito de me irritar. Geralmente, a minha resposta, numa perspetiva pedagógica, era a seguinte: “Não, não é obrigatório. Nada é obrigatório. Fazes se quiseres, se não quiseres, não fazes. Porque és livre! Livre para crescer, ou não crescer; livre para aprofundar, ou ser superficial; livre para participar, ou para desistir”. Ao ouvirem isto, os alunos ficavam um pouco confusos e desorientados… mas pensativos!

Esta pergunta era bastante mais comum do que se poderia esperar. Até em alunos do secundário. Isto porque eles vivem e aprendem num sistema educativo bastante “paternalista”, onde os professores os mandam fazer TPC’s, os pais os mandam estudar, onde sabem exatamente o que devem fazer para ter sucesso académico. É um sistema que os educa para o cumprimento de ordens e regras, mas muito pouco para a autonomia e a responsabilidade, para serem donos da sua própria vontade.

Desde pequenos que fazemos o que nos mandam, que cumprimos as nossas “obrigações”: lavar os dentes, comer a sopa, pôr e levantar a mesa, etc. As crianças sabem o que têm que fazer a todo o momento. Sabem também o que não podem fazer. Se algo surge fora do ordinário e ficam na dúvida, perguntam aos pais, aos professores, ao treinador, ou a outra figura de autoridade. Nos primeiros anos de vida, a educação não é mais do que um longo caminho de obediência: cumprir regras, ditadas por adultos, isto é, fazer o que é “obrigatório”. E assim tem que ser. À medida que vamos crescendo, chegada a idade juvenil, vamos tendo um pouco mais de autonomia e podendo gradualmente fazer as nossas escolhas, na gestão do tempo, entre o trabalho e o ócio, por exemplo. Vamos, no fundo, conquistando a nossa liberdade, dando provas aos pais e restantes adultos de que já somos capazes de escolher bem, de que podem confiar mais em nós.

Neste tempo especial, em que continuamos a viver sob a ameaça da “pandemia”, há muitas indicações das autoridades de saúde que são “obrigações”: usar a máscara dentro de espaços fechados, manter a distância de segurança, etc. Mas há outras que são “conselhos”, em que temos que escolher responsavelmente para proteger o bem comum, por exemplo, “Mantenha as distâncias de segurança”. Esta questão tem precisamente a ver com o confronto entre a liberdade e a obrigação. Uma pessoa adulta e responsável, um cidadão bem formado, entende facilmente que deve cumprir as normas e os conselhos, pelo bem comum, porque é o melhor a fazer. Um cidadão irresponsável e infantil, poderá cumprir apenas se for obrigado e não cumprir se não for, simplesmente porque não lhe apetece ou porque não “dá jeito”.

Aquilo que nos impede de fazer o que é melhor são os apetites, o comodismo, o egoísmo, a auto-imagem, enfim, tudo aquilo que nos impede de amar, em cada escolha responsável que fazemos. Em linguagem de S. Inácio, são os nossos afectos desordenados.

Em linguagem inaciana, o caminho de crescimento em maturidade e responsabilidade dá-se quando cresço em maior liberdade interior. Esta expressão significa que:

– Tenho como fim da minha vida ser feliz, amando e servindo Deus e os outros;

– Tenho disponíveis muitos meios para alcançar esse fim, uns que me ajudam e outros que não me ajudam;

– Por isso devo escolher aqueles meios que mais me ajudam a amar e servir; e rejeitar os outros;

– Daí que deva tornar-me indiferente (interiormente livre) para poder escolher somente o que mais me conduz ao fim dessa felicidade.

(adaptado do Princípio e Fundamento, dos Exercícios Espirituais de S. Inácio de Loyola).

Se sou capaz de escolher responsavelmente, segundo um critério de amor e serviço – o que faço ou o que rejeito; como uso o meu tempo; como me comporto; o que digo ou não digo; etc, torno-me uma pessoa interiormente livre. Se sou movido por aquilo que os outros dizem, pelo que os meus pais ou professores mandam, por aquilo que a DGS diz, ou pela minha preguiça ou egoísmo, então não sou uma pessoa interiormente livre. Aquilo que nos impede de fazer o que é melhor são os apetites, o comodismo, o egoísmo, a auto-imagem, enfim, tudo aquilo que nos impede de amar, em cada escolha responsável que fazemos. Em linguagem de S. Inácio, são os nossos afectos desordenados.

Porque, a maior parte das vezes, as verdadeiras aprendizagens dão-se quando se faz a experiência pessoal, responsabilizando-se pelos efeitos da escolha realizada.

Para que as nossas crianças e jovens cresçam em autonomia e na capacidade de fazerem escolhas responsáveis, tentando perceber em cada momento, para si próprias e para os outros, qual o bem maior, deveríamos incentivar, na família e na escola, situações em que possam treinar escolher por elas próprias. Para isso, devemos dar-lhes critérios, ajudá-las a decidir bem, fazer-lhes ver as consequências de uma boa e de uma má escolha. Porque, a maior parte das vezes, as verdadeiras aprendizagens dão-se quando se faz a experiência pessoal, responsabilizando-se pelos efeitos da escolha realizada. Se temos sempre o professor, os pais, o chefe ou a polícia a dizer o que se deve fazer, os mais novos crescem numa moral externa e nunca aprenderão a decidir, autonomamente, o que é o melhor. E continuarão a perguntar(-se), pela vida fora: “Stôr, é obrigatório?”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.