Estávamos todos sentados no anfiteatro, jovens, imaturos, com aquela pressa da juventude que fervilha nos que se impacientam com o que a vida demora a começar. O professor Nelson Traquina falava-nos da “tribo jornalística”, aquela a que queríamos pertencer. Estávamos lá na esperança de que se começasse ali o ritual iniciático que nos faria pertencer a essa estirpe. O cão de guarda, o gatekeeper, o quarto poder. Era nisso que imaginávamos que nos iríamos transformar. Estávamos ali porque queríamos mudar o mundo.
Foram precisos alguns anos e bastantes percalços para ter enfim nas mãos uma carteira profissional. É um cartão plastificado, com uma palavra mágica. “Press”, que após alguns anos ganha um fundo dourado, sinal de estatuto. Usei muitas vezes esse cartão para forçar portas, aceder a informação que parecia vedada, mostrar que estava ali numa missão. “Estou a trabalhar”, repeti muitas vezes, enquanto brandia o plástico à frente de um agente da autoridade.
Ser jornalista foi, ao longo de muitos anos, uma proteção, um escudo invisível que permitia aos mais audazes aproximarem-se de situações limite para reportar o que mais ninguém podia ver. Nunca fui (nem quis ser) repórter de guerra, mas sabia bem o quanto valia um colete com a palavra “Press” naqueles que arriscavam a vida para nos dar a ver o que muitos queriam que ficasse na sombra.
Ser jornalista é dar a voz aos que a não têm. Obrigar os poderosos a sair do silêncio que os protege. Mostrar o que se quer esconder. Contar para que não se esqueça.
Nas últimas décadas, aprendemos a ver a liberdade de expressão como o ar da democracia. Por todo o mundo ocidental, as democracias liberais afirmaram a sua superioridade moral também através da garantia de uma imprensa livre. Essa conquista humana está em risco.
Nas últimas décadas, aprendemos a ver a liberdade de expressão como o ar da democracia. Por todo o mundo ocidental, as democracias liberais afirmaram a sua superioridade moral também através da garantia de uma imprensa livre. Essa conquista humana está em risco.
Segundo os Repórteres sem Fronteiras, no último ano foram mortos 172 jornalistas pelo exército israelita em Gaza. Mais: esta organização denuncia como os repórteres se transformaram em alvos.
Mahamoud al-Hams, fotojornalista da AFP, citado pelo site Reseau International, relata como percebeu ter-se tornado num objetivo militar neste conflito: “Algumas pessoas, durante a evacuação da cidade de Gaza não queriam que estivesse com elas por terem medo que me atacassem por ser jornalista. Outras negaram-se a arrendar-nos casas para nos alojarmos, trabalhar e descansar, porque tinham a convicção firme de que todos os jornalistas em Gaza eram alvos”.
A própria sede do canal Al Jazeera, em Ramallah, na Palestina, foi invadida por soldados israelitas, na madrugada de 22 de setembro, acusada por Israel de apoiar o terrorismo e de, segundo a Reuters, ser a voz do Hamas e do Hezbollah.
Mas não é só no Médio Oriente, num cenário de guerra, que a liberdade de expressão está em risco. Em agosto, Richard Medhurst entrou para a história ao ser o primeiro jornalista a ser detido no Reino Unido ao abrigo do artigo 12 da Lei de Terrorismo.
Em vigor desde o ano 2000 e alterada em 2019, a lei prevê, neste artigo 12, uma pena de prisão de até 14 anos para quem “expressar uma opinião ou crença que apoie uma organização proibida” e, ao fazê-lo, ser “imprudente quanto à possibilidade de uma pessoa a quem a expressão é dirigida ser incentivada a apoiar uma organização proibida”.
Em 17 de abril de 2023, o editor francês Ernest Moret também foi detido ao chegar à estação St. Pancras de Londres por ter participado em manifestações em França contra a reforma da Segurança Social do Presidente Macron.
Moret foi detido de acordo com o Anexo 7 da Lei de Terrorismo de 2000, que permite que as autoridades em portos e aeroportos parem, interroguem e detenham pessoas para investigar suspeitos de atos de terrorismo. A Polícia inglesa acabaria por ser obrigada a pagar uma avultada indemnização a Moret, mas entretanto soube-se que pelo menos 4.525 estrangeiros foram parados à chegada ao Reino Unido, sob a mesma lei, entre 2020 e 2023, incluindo 334 irlandeses, 192 holandeses, 175 franceses, 99 suecos e 94 alemães.
Os jornalistas são só os canários na mina. Quando cortarem o ar da liberdade, ninguém conseguirá respirar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.