Sós, mas não abandonados

Oração e gestos de cuidado: assim nos elevaremos, como Jesus. Diante de Deus, origem e salvaguarda da vida, ousamos rezar: “quando nos reconhecemos sós, não permitais, Pai, que nos sintamos abandonados”.

Reli, recentemente, A Vitalidade da Bênção, de Elmar Salmann (Braga: AO, 2017). Devo tanto a este pensador, às suas aulas, que pude seguir há anos, e, sobretudo, aos seus livros. Vejo-me a regressar constantemente a eles, em busca de chaves de interpretação e de aberturas. É espiritual aquilo que abre. Se há pessoas, circunstâncias, livros que fecham, há muitos outros que têm a virtude de abrir. Sempre que acontece, ficamos tão reconhecidos e gratos.

«Devemos respeitar e abraçar a difícil bênção da contingência», escreveu-me uma vez, num cartão dactilografado. Conservo-o como um tesouro. Tornou-se para mim uma fórmula para a decantação da matéria da vida, ora bruta, ora gentil, um mapa de orientação para percorrer os seus caminhos, luminosos e promissores, umas vezes, arriscados e áridos, outras. Repare-se bem: respeitar e abraçar a difícil bênção da contingência. Sobre a vida, fica quase tudo dito. Respeitar as promessas e os limites da contingência de cada coisa e da nossa finitude, sem carregar os tons nem ceder à tentação de pecar por euforia (tudo é possível; posso tudo) ou por depressão (nada é possível; nada posso). É, porém, tão difícil orientar-se pela luz desta estrela – respeitar e abraçar a difícil bênção da contingência –, alcançar esta sabedoria prática. O mais fácil e comum será exigir demasiado a nós próprios, aos outros, ainda mais a quem amamos, ao espírito, ao tempo, à natureza…. Tendemos a forçar a realidade e os outros para lá dos seus limites, a fazer-lhes violência. Torturamo-los para lhes extorquir uma verdade que não podem confirmar, para extrair um retorno que não podem garantir. Pelo contrário, respeitar e abraçar a contingência é uma forma de salvaguarda. Salvaguardar a vida, o amor, a liberdade, as relações, a verdade, a justiça, a arte, a paz, também a fé. São bênçãos, mas, por vezes, tão difíceis. E, porém, no seu custo, permanecem bênção, promessa de bem sem a qual não vivemos.

Num tempo de comunicação contínua, de partilha sem limites, de múltiplas e ininterruptas interconectividades, podemos iludir-nos. Cada homem e cada mulher passam pelo mesmo destino «de estar só: de estar “completamente só”».

Bênção difícil é também a solidão. No capítulo segundo de A Vitalidade da Bênção, enquanto observa o estado atual da vida religiosa, recorda Salmann como «todo o homem é e está só (alleinig) […] e nesse estado permanece: completamente só (all-einig). Cada homem é um mundo». Mas isso «é também, em si, um bem», porque «nada de grande pode surgir a não ser na solidão, tal como acontece à vida humana no seio materno». Reparemos, convida o autor, em figuras como Bento de Núrcia, Francisco de Assis, João da Cruz ou Inácio de Loyola, Charles de Foucuald, Teresa de Ávila, Teresa de Lisieux ou Teresa de Calcutá. Passaram todos pela solidão radical. Habitaram cavernas, alguns literalmente, de onde, por fim, se viram a renascer. Por isso, «não são de modo algum homens e mulheres incapazes, insignificantes, hesitantes, mas, antes, figuras fundamentais da história da Igreja». Revelam como «a solidão, que hoje é concebida como algo de melodramático, insuportável e depressivo, é, neles, pelo contrário, algo de grande, que é preciso aprender a enfrentar com coragem». Num tempo de comunicação contínua, de partilha sem limites, de múltiplas e ininterruptas interconectividades, podemos iludir-nos. Cada homem e cada mulher passam pelo mesmo destino «de estar só: de estar “completamente só”». É importante aprender esta lição. Somos, de facto, sós, únicos, como um universo completo, e, ao mesmo tempo, tão expostos, tão dependentes, tão precários. «Nunca nos descobrimos nem chegamos ao fundo de nós mesmos: nunca estamos à altura da nossa profundidade». O que somos e o que nos toca viver é tudo tão elevado e tudo tão frágil. Saberemos viver com paixão esta nossa solidão estrutural e fazer dela lugar de novos nascimentos, processo de abaixamento de onde nos elevamos em estatura humana?

Esta é uma face. A outra revela que «é “juntos” que nós somos sós». Somos «solidão emoldurada», diz Salmann. «Quanto mais profundamente um homem suporta e gere a sua solidão, mais se torna consciente dos mistérios da existência»: quando «chora ou ri, naqueles momentos em que é ainda criança e ei-lo já velho, em que assistiu a nascimentos e a mortes, em que se dá conta da sua grandeza e da sua precariedade, das vitórias e das derrotas da existência», aí, reconhece-se próximo dos outros, feito da mesma matéria, exposto às mesmas forças, sonhos e medos. Não é o que, agora, sentimos diante das imagens horrorosas da guerra? Aquele desespero, aquela incredulidade, aquele abandono que reconhecemos em tantos rostos, aquela exposição ao arbitrário não é de solidão humana que nos falam, da nossa própria solidão? Poderia ser eu. Nestes momentos, damo-nos conta, mutuamente, de que somos carne da mesma carne, que não podemos viver sem outros e que o destino da nossa existência se joga no destino da existência do nosso semelhante: “todos nus, todos irmãos”.

Só na oração, no retirar-se encontrou efectivamente um “Tu” que O protegia».

Assim estamos diante de nós mesmos e dos outros: sós e juntos. Assim estamos diante de Deus. Como Jesus, «estranho, difícil, insignificante, desconhecido Jesus». É tão pouco o que os apóstolos puderam captar d’Ele, recorda Salmann. E, como eles, assim nós. Jesus «é alguém sobremaneira só: “Eu sou!” – senhorialmente, soberanamente. […] É o senhor de si mesmo, diante do seu Deus, de andar seguro; mas precisamente por isso é também incompreendido, não reconhecido, alguém a eliminar. Só na oração, no retirar-se encontrou efectivamente um “Tu” que O protegia». Apresenta-se, assim, como «o santíssimo de Deus exposto entre os homens e, ao mesmo tempo, um homem que levanta a Deus os braços na sua solidão». Oração e gesto de cuidado, assim é Jesus. É assim que comunica, mas, precisamente por isso, e ao mesmo tempo, «é também, mais uma vez, incompreendido». Tão junto de nós e tão só. Porém, não abandonado.

Mal saídos da pandemia, entrámos num cenário de guerra. Como poderemos deixar de amadurecer, de aprender a suportar e de habitar esta nossa radical solidão, a mesma que reconhecemos nos rostos de quem é bombardeado e ferido, de quem foge, de quem ataca, de quem se defende, de quem jaz morto, sem ter sequer quem lhe dê sepultura? As nossas raízes afundam aqui, neste lugar incontornável que é a nossa solidão, mas do qual, talvez, possamos elevar-nos mais humildes e sensatos. Oração e gestos de cuidado: assim nos elevaremos, como Jesus. Diante de Deus, origem e salvaguarda da vida, ousamos rezar: “quando nos reconhecemos sós, não permitais, Pai, que nos sintamos abandonados”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.