Maria não está junto à cruz nas narrativas da paixão dos Evangelhos Sinóticos. Possivelmente, os autores destes três evangelhos consideram que Maria (tal como José) já teria morrido nessa ocasião. De facto, a julgar pelo que E. P. Sanders e outros autores asseveram, a idade com que Jesus morreu estaria já para além da esperança média de vida da época, quanto mais a de Miriam (o nome hebraico «Miriam» é o nome original da mãe de Jesus, «Maria» é uma transliteração latina deste nome). Ao invés, São João não só coloca Maria (ou Miriam) como espectadora da morte do filho como constrói um tri-álogo entre Si, a sua mãe e o «discípulo que amava», confiando-os um ao outro e tendo isto possivelmente qualquer coisa de narrativa fundacional das comunidades ligadas a este apóstolo.
São Paulo nunca fala de Maria. Para apresentar os novos paradigmas teológicos com que reinterpreta o repositório das convicções judaicas à luz da crença em Jesus e na sua ressurreição, é a duas figuras femininas do Antigo Testamento que Paulo recorre: Sara e Agar. Refere-as na carta aos Romanos e na carta aos Gálatas. Nesta última, no final do quarto capítulo, Agar (serva de Sara e mãe de Ismael) simboliza a Jerusalém real, os filhos da carne e a escravidão, ao passo que Sara (mulher de Abraão e mãe de Isaac) representa a Jerusalém do Alto, os filhos da promessa ou da lei e, em suma, a liberdade.
Esta ligação metafórica de uma mulher a Jerusalém é percetível na vinculação indireta da mãe de Jesus também à Jerusalém celeste que tem lugar no Apocalipse. É neste livro, que é uma longuíssima carta circular destinada a ser lida nas comunidades joaninas (as sete igrejas), e nas narrativas do nascimento de Jesus do Evangelho de São Lucas que são oferecidas as mais desenvolvidas imagens de Maria do Novo Testamento.
No Apocalipse, sem que nunca seja designada com qualquer nome próprio, ela interpreta o papel de heroína da guerra cósmica cuja imponente encenação é a intenção-base do livro. Do lado do campo militar da mulher que dá à luz, está Miguel, os seus anjos e a armada dos mártires; do lado oposto do combate está a prostituta que bebe o sangue daqueles que morreram pela fé em Jesus (prensado no «lagar da ira de Deus») e que forma uma equipa liderada pela besta marítima e constituída ainda pela besta terrestre.
Na saturação simbólica do Apocalipse, na sua rede profusa e sumamente organizada de referenciais espaciais, numéricos e imagéticos, a mãe de Jesus surge com uma sofisticação mística, sendo-lhe impressa uma dramaticidade e uma profundidade inéditas. É a súmula de múltiplos percursos hermenêuticos traçados entre o universo judaico e o cristão e de tanta expetativa agudizada na terrível experiência de se ver morrer ou matar amigos ou familiares cristãos. Nas primeiras textualidades acerca da mãe de Jesus ela seria prontamente inscrita num plano de alta mística e de uma linguagem apocalítica que puxa até ao limite o capital metafórico desta personagem que é central no cenário trans-histórico do Apocalipse.
Assim, a versatilidade do seu conforto permite dar um espelho e uma saída a todos os matizes das patologias e das fobias que nos atravessam, e exprimir o excessivo consolo de Deus mais como ícone do que como caricatura.
A importância da mãe de Jesus na fé da generalidade dos cristãos não foi imediata. Nos primeiros tempos do cristianismo, Santa Tecla (seguidora de Paulo) foi a mulher que mais sobressaía no mapa das devoções. A atenção dada à mãe de Jesus substanciou-se na literatura sobre a sua «dormição» e em determinados locais onde ocorreu a oferenda de bens materiais no culto que lhe era prestado; prática censurada pelas autoridades da Igreja.
A força popular da convicção de Maria ser a Theotokos (a mãe de Deus) foi pretexto e contexto para um dos debates identitariamente definidores do cristianismo no século IV. Contudo, só em plena medievalidade ela assumiria um lugar de destaque entre o número dos santos e desdobrar-se-ia em numerosos heterónimos (Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora do Ó…).
Até onde quero chegar com esta desmontagem histórica de Maria (ou Miriam), mãe de Jesus? Gostaria de que este percurso permitisse evidenciá-la como para-raios da criatividade dolorosa dos cristãos, catalisadora dos sofrimentos ditos e reditos, gritados em numerosas tonalidades, ao longo de toda a história das mulheres cristãs. A relação espiritual com Maria constituiu-se como paraíso fiscal para as fantasias da consolação legítimas dos crentes – das mulheres crentes, especialmente – colhidas na travessia da terra sísmica da condição humana.
No Novo Testamento, Maria é uma figura de silêncio; como o silêncio é insustentável, foi sendo preenchido por múltiplas e interessantes figurações do consolo de Deus declinadas no feminino. Assim, a versatilidade do seu conforto permite dar um espelho e uma saída a todos os matizes das patologias e das fobias que nos atravessam, e exprimir o excessivo consolo de Deus mais como ícone do que como caricatura. Nesta medida, enquanto braço desarmado do amparo de Deus e inspiração para a coragem e a resistência de tantas mulheres e de tantos homens, Maria é o alter ego da Igreja.
Este texto é dedicado a Ivone Gebara, teóloga e filósofa brasileira, figura de grande relevância da Teologia da Libertação sobretudo na sua vertente feminista. Ivone esteve em Portugal recentemente, a convite do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.