Silly season: a justiça vai de férias?

Aproveitemos este tempo de verão, não para desligar a nossa empatia com os que mais sofrem, a nossa sensibilidade à injustiça ou o nosso olhar crítico sobre o mundo, mas antes façamos tudo isso de um modo diferente e, porque não, renovado.

Durante o período de verão, a ausência ou drástica diminuição de acontecimentos jornalisticamente relevantes está na origem da tradicional (a expressão tem mais de 100 anos!) SillySeason, a estação das notícias ridículas em que os noticiários e jornais se enchem de curiosidades acerca de animais de estimação, grandes reportagens sobre as férias das mais variadas celebridades e toda a emoção do mercado de transferências de jogadores de futebol (este ano apimentado pela campanha eleitoral no Sporting).

Mas não são só as notícias que vão de férias, é também o nosso interesse e capacidade de encaixe para os conflitos e tragédias deste nosso mundo que ficam diminuídos. Que o peso dos dramas mais ou menos longínquos não nos estrague o ansiado e merecido descanso! No entanto, bem sabemos, lá no fundo, que os “problemas” continuam aí: as injustiças de todo o tipo, as guerras, a miséria, os refugiados, as catástrofes naturais… Pensando bem, não há nenhuma razão séria para que todas estas coisas diminuam só porque já não preenchem páginas de jornais (ou nós deixamos de os ler)!

Não pretendo estragar as férias a ninguém com um convite a alimentar pesos na consciência (nem teria nenhuma autoridade para tal), mas deixo aqui algumas ideias para um “verão mais justo”. Aproveitemos este tempo, não para desligar a nossa empatia com os que mais sofrem, a nossa sensibilidade à injustiça ou o nosso olhar crítico sobre o mundo, mas antes façamos tudo isso de um modo diferente e, porque não, renovado. Mesmo sem notícias!

O que fazemos e que consequências isso tem na sociedade ou comunidade em que vivemos? O que é que desejamos, o que nos move e nos (pre-) ocupa? Quem acolhemos, acompanhamos, ajudamos e a quem negamos estas coisas?

P. António Ary, sj

1. AVALIAR

Ao fazermos uma pausa do dia-a-dia, com o seu stress e as rotinas que muitas vezes nos levam a viver em “piloto automático”, surge a possibilidade e o desafio de olhar para tudo isso e fazer um balanço. Um tempo de pausa pode ser ocasião para olhar para a nossa vida sob o prisma da justiça: O que fazemos e que consequências isso tem na sociedade ou comunidade em que vivemos? O que é que desejamos, o que nos move e nos (pre-) ocupa? Quem acolhemos, acompanhamos, ajudamos e a quem negamos estas coisas? Que impacto têm os meus hábitos, o meu modo de ser, sobre os que me rodeiam e sobre o planeta? Em poucas palavras: de que modo posso tornar a minha vida mais justa?

2. APROFUNDAR

O ritmo desacelerado (espera-se!) das férias – e do verão em geral – convida-nos a um modo de interação com o mundo de maior profundidade, trocando a quantidade pela qualidade. Se nesta altura do ano os jornais dizem pouco, porque não ler um livro? Uma boa leitura, seja ela de um ensaio sério acerca de alguma questão de atualidade, um livro de história ou mesmo um romance de qualidade, é sempre uma janela que se abre e uma oportunidade para aguçar o olhar sobre o mundo. Não faltam listas de sugestões, cheias de possibilidades para fortalecer o espírito crítico ou vencermos os nossos preconceitos.

Viver um verão orientado para a justiça não tem de ser com grandes transformações sociais e perseguindo sonhos impossíveis, nem sequer dedicando-nos a uma nobre causa. Sabemo-lo bem, a transformação começa dentro de cada um de nós e a transformação do nosso próprio coração não é coisa nem fácil, nem nunca acabada.

P. António Ary, sj

3. ARRISCAR

Porque não aproveitar o tempo de verão para “fazer a diferença” com criatividade? Viver um verão orientado para a justiça não tem de ser com grandes transformações sociais e perseguindo sonhos impossíveis, nem sequer dedicando-nos a uma nobre causa. Sabemo-lo bem, a transformação começa dentro de cada um de nós e a transformação do nosso próprio coração não é coisa nem fácil, nem nunca acabada! Um tempo de descanso proporciona-nos, portanto, uma oportunidade para decidir dar um passo – pequeno, prático e possível – que possa ser o início de uma caminhada transformadora: um pedido de desculpas (ou um agradecimento) há muito devido, uma relação a reconquistar, um gesto ou uma palavra de proximidade, e muitas outras formas de “fazer justiça”!

Assim sendo, ao irmos de férias, não demos férias ao nosso sentido de justiça, à nossa compaixão, ao nosso interesse por aquilo que se passa “lá fora”… Aproveitemos este tempo, em vez disso, para crescer na sensibilidade, avaliando, aprofundando e arriscando, para voltarmos de férias homens e mulheres mais justos, mais empenhados na construção da justiça!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.