Ser Cristão é ser Político (IV) – A eutanásia: uma possibilidade a considerar?

Como cristã contemplo um Horizonte transcendente à existência. Faço minhas as palavras de uma oração hindu, ao pedir que cada pessoa possa levar a sua vida até ao fim. Mas, tudo tomado em conta, sou a favor da despenalização da eutanásia.

      Meu Deus, não permitais que os meus dias se

  acabem sobre a Terra sem que eu tenha

            cumprido aqui a  minha missão  (Oração hindu)

 

1. Vindo do grego, o lexema eutanásia significa “boa morte”, abrindo assim um campo plural de sentidos. (O Direito, aliás, pondera-a em diferentes modalidades: as passivas ou indiretas e as diretas ou ativas, todas elas com vários cambiantes.)

Ora o que está recentemente em debate na sociedade portuguesa é, antes de tudo o mais, a possibilidade de a lei penal não penalizar quem acede ao pedido de alguém para morrer antes da sua morte natural. Isto em circunstâncias extremas de sofrimento, de dependência, de intolerável degradação física, ou no caso de doença terminal. É que a atual legislação portuguesa pune quem aceder a tal pedido com pena de prisão.

Creio porém que a reflexão sobre a possibilidade da eutanásia tem de fazer-nos recuar, para termos em conta um dado fundamental, definidor do animal- humano: o de que ninguém é dono de si mesmo. Mesmo ao dizer-se “eu”, nenhum sujeito se possui a si próprio, no sentido de ter poder absoluto sobre a sua própria vida. Por acasos do destino, de múltiplas relações, no contexto do Mundo, nasce-se em determinado local, tempo e ambiente humano e social, com condições e traços únicos, mas como parte integrante de um todo: a Humanidade. Daí que cada pessoa não seja totalmente independente ou autónoma (no sentido próprio de fabricar leis-para-si) em relação ao conjunto dos animais-humanos: somos, na conhecida formulação de Merleau-Ponty, “eus-com-outros-no-mundo”.

O sentido de posse, que tanto caracteriza o nosso tempo, mesmo o da posse de si, é basicamente indevido, ao manifestar uma usurpação do que verdadeiramente não nos pertence.

Dito isto, não me é lícito expressar-me como se fosse “proprietária(o) de mim-mesma (o)”. Cada pessoa pertence de facto a esse vasto conjunto dentro do Universo e da História, situada como está numa complexa e densa teia de relações e sentidos. E enquanto crentes, mais ainda: em última análise cada um pertence a Deus. O que sim somos é responsáveis pelo que fazemos da vida e até pelo que fazemos do que outros fizeram de nós (Virgílio Ferreira).

Deste modo, não creio que alguém tenha poder absoluto sobre a sua própria vida para dela dispor de qualquer maneira.

Só que existe uma imensa diferença entre isso e a possibilidade de alguém viver uma situação tão extrema que não lhe permita manter-se em vida com o mínimo de qualidade indispensável para ser-se humano.

Cada pessoa pertence de facto a esse vasto conjunto dentro do Universo e da História, situada como está numa complexa e densa teia de relações e sentidos.

Isabel Allegro de Magalhães

2. Hoje é já tido por muitos como legítimo, na comunidade médica e na sociedade, que seja posto fim ao encarniçamento terapêutico (desligando máquinas que assegurem funções vitais, por ex.) ou que se permita tomas de medicação para as dores que antecipadamente se sabe poderem propiciar ou apressar a morte do doente. Mas não se trata aqui de eutanásia ativa. Esta consiste em propiciar diretamente a morte  a pedido do doente.

Contudo, o que antes de mais é imperioso será criar cuidados de saúde de excelência ao acesso de todos, para o que médicos e enfermeiros são precisos em número suficiente e de qualidade superior. Precisos, igualmente, são fármacos inovadores resultantes de intensa investigação científica médica e farmacológica, de modo a ser possível minorar, ou mesmo eliminar, a dor, através das mais avançadas tecnologias. Também essencial é o investimento em instalações em número suficiente e ajustadas a cada caso clínico. Tudo isto de par com um investimento competente e imaginativo, para que cada vez mais seja garantida a qualidade de vida de cada pessoa, a formação humana dos profissionais de saúde, a fim de se conseguir uma atitude mais cuidadosa e calorosa por parte de todos os que estão implicados nesses casos, particularmente difíceis. E isto sempre de par com uma vigilância extrema, organizada e rigorosa, para que não haja margem de abusos de nenhuma espécie.

Acredito que, se tais requisitos estiverem a funcionar e ao acesso de cada doente, possivelmente ninguém falará então em querer morrer prematuramente, ou em eutanásia.

Acredito que, se tais requisitos estiverem a funcionar e ao acesso de cada doente, possivelmente ninguém falará então em querer morrer prematuramente, ou em eutanásia.

Isabel Allegro de Magalhães

3. O pior é que subsistem casos – e todos o sabemos – em que nada ou quase nada disto existe ou funciona como deve ser. E é apenas por isso que julgo ser justo e digno escutar a voz daqueles que sofrem em excesso, não se considerando capazes de viver com sentido a vida que é a sua.

Essa pretensão de pôr termo à sua vida, por parte de doentes em estado (para si) insuportável ou terminal, não pode deixar de mobilizar em nós compaixão e uma resposta correspondente.

É claro que esse “sofrer demais” terá sempre um cariz de avaliação subjetiva. Por isso, todo o pedido explícito de eutanásia requer, pelo menos, três condições:

– Por um lado, que, no momento em que um tal pedido é expresso o doente esteja plenamente livre, consciente e informado, ou então que anteriormente tenha feito um testamento vital, onde expressamente tenha declarado essa sua decisão.

– Por outro lado, que tal pedido de eutanásia seja submetido a uma entidade multidisciplinar e de elevada estatura ética (dos campos da medicina, farmacologia, psiquiatria, psicologia). Trata-se de dar possibilidade ao doente de aceder a essa entidade, que irá ponderar a situação do requerente. Simultaneamente, é indispensável um diálogo com quem pretende pôr fim à sua vida: um diálogo ético-clínico consistente, profundo e de sabedoria, da parte das pessoas desse corpo ético hospitalar.

– Por outro lado ainda, haverá que fazer recuar o Direito Penal, de modo a que ninguém envolvido no acto de eutanásia seja por isso punido. Haverá pois que retirar do campo deste ramo do direito a penalização de quem realizar esse desígnio de um doente grave ou terminal.  (Há que lembrar que do Direito Penal foram já sendo retiradas diversas situações, antes penalizadas. Por exemplo: o adultério, o consumo de drogas.)

Em cada caso, o escrutínio terá de ser eticamente rigoroso tanto como generoso.

Por outro lado ainda, haverá que fazer recuar o Direito Penal, de modo a que ninguém envolvido no acto de eutanásia seja por isso punido. (…) Em cada caso, o escrutínio terá de ser eticamente rigoroso tanto como generoso.

Isabel Allegro de Magalhães

4. Apesar disto, qualquer profissional de saúde tem o direito a recusar intervir para propiciar uma morte assistida. Contudo, existirá quem, por compaixão, de entre os clínicos e técnicos, aceda a tais pedidos extremos. A decisão será totalmente livre, é evidente.

Julgo, porém, que uma tal escolha de morrer antes de a morte chegar por si, não pode nunca ser julgada por ninguém. É que ninguém possui autoridade sobre a consciência de outrem. Deste modo, quem de entre os profissionais de saúde, depois de todas as condições para considerar válido o pedido de eutanásia, se disponibilizar para o levar avante não deverá nunca ser punido por tal ato.

Tudo tomado em conta, sou totalmente a favor da despenalização do ato da eutanásia, isto é, da não-penalização daqueles que aceitem realizar esse último pedido de alguém aflito, em doença e sofrimento extremos, consciente de que a lei não é nem um licenciamento qualquer nem uma referência absoluta. Tem de existir para o bem maior de todas e cada uma das pessoas.

Com igual veemência, sou totalmente contra a eventual decisão de um Estado (neste caso o português) pôr à disposição dos seus cidadãos, por exemplo no SNS, um “serviço de eutanásia”.

Com igual veemência, sou totalmente contra a eventual decisão de um Estado (neste caso o português) pôr à disposição dos seus cidadãos, por exemplo no SNS, um “serviço de eutanásia”.

Isabel Allegro de Magalhães

5. Contemplo, enquanto cristã, um Horizonte último, transcendente à existência. Um futuro absoluto, em Deus. Assim, misteriosamente embora, acredito que a vida se prolongará para lá da morte. Também creio que o sofrimento, mesmo grande, enquanto for suportável (e tal avaliação será sempre subjetiva), pode adquirir um sentido maior, se interiormente acolhido. Por isso faço minhas as palavras da oração hindu, ao pedir a Deus que cada pessoa possa levar a sua vida até ao seu fim, cumprindo a missão que entendeu ser a sua sobre a Terra.

Muita gente porém não partilha dessa visão, e não é legítimo universalizá-la. E até quem dela partilha poderá ver-se numa situação em que pretende terminar a sua vida antes de ela se extinguir naturalmente, por não aguentar atravessar o que tem à sua frente. (Penso em dois casos recentes: o do teólogo católico alemão Hans Kung que considera essa possibilidade para outros e para si, dada a sua doença de Altzheimer; e o do arcebispo cristão Tutu, da África do Sul, que defende a eutanásia como um direito humano.)

Por isso, a uns e a outros, perante uma “morte a pedido”, sempre in extremis, só é possível e justo responder com compaixão e pleno respeito. São atitudes quase absolutas, da ordem do coração e das entranhas (mais que da razão), como aprendemos de Jesus Cristo.

Por isso, a uns e a outros, perante uma “morte a pedido”, sempre “in extremis”, só é possível e justo responder com compaixão e pleno respeito.

Isabel Allegro de Magalhães

Não julgo por isso lícito julgar uma decisão do foro íntimo de alguém, e muito menos que um Estado inviabilize uma escolha tão pessoal, ao penalizar quem, por compaixão e respeito, dê a outrem a resposta eficaz que solicita.

Se o teu coração te acusa, Deus é maior que o teu coração.

Nota da direção do Ponto SJ: Respeitamos a opinião expressa neste artigo pela sua autora, mas relembramos a posição oficial que os Jesuítas em Portugal tomaram na altura da votação dos Projetos de Lei sobre a Eutanásia no Parlamento. Essa posição pode ser lida aqui: Não somos sozinhos, não morremos sozinhos

Foto de capa: Dmytro Zinkevyc/Shutterstoch

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.