Se não respondo por mim, quem responderá por mim?
Mas se só respondo por mim, serei ainda eu?
– Talmude da Babilónia –
1. O carácter único do ‘eu’, nos termos de Edgar Morin, surge como princípio de exclusão: ninguém pode dizer ‘eu’ por mim. Só eu me posso referir a mim mesmo enquanto sujeito.
Simultaneamente, e numa outra dimensão, o ‘eu’ inclui-se numa subjectividade superior, que é um ‘nós’ (constituído por família, grupo, comunidade, partido, nação, etc.). E sem essa dimensão de uma primeira pessoa gramatical no plural, a vida humana além de ser totalmente inviável, pura e simplesmente não teria qualquer sentido.
O facto de só ‘eu’ poder dizer-me a mim mesmo leva a que só o próprio – ele ou ela – possa responder pela sua vida: pela forma como a concebe, pelo que dela faz. Se não respondo por mim, ninguém em meu lugar poderá responder por mim.
Contudo, se o ‘eu’ for o centro do meu interesse e da minha atenção – e é curioso que seja o Talmude da Babilónia a expressá-lo – a minha identidade vacila: “serei ainda eu?”
É que o sentido maior, no trânsito terreno que é o nosso, acontece quando cada ‘eu’ se dedica a outros que o incluem na sua subjectividade e pelos quais o ‘eu’ se torna responsável até às últimas consequências.
Quer isto dizer que, se por um lado somos autónomos, por outro somos intrinsecamente dependentes e interligados, de modos variáveis mas fortes.
Sendo assim, cada um terá de interrogar-se quanto ao conjunto de outros a que pretende aderir para assumir co-responsabilidades inalienáveis, encontrando nesse ‘nós’ razões em que acredita e um sentido mais amplo para a sua vida.
Contudo, não basta imaginar um ‘nós’ virtual, que nos dê satisfação mas sem realidade palpável, como naquela cena da Banda Desenhada que integra as figuras de Lucy e Charlie Brown, de que alguns de nós ainda nos lembramos. Charlie, quando Lucy o criticou por não amar a sério a humanidade, respondeu-lhe assertivo: “Lucy, I love humankind. What I hate is people.”
Pode ainda acontecer que o ‘nós’ em que confortavelmente mergulhamos seja um conjunto demasiado restrito (família, círculo de amigos, colegas, etc.) que antes de mais aconchega e fortalece, mas que não nos faz içar a uma escala humana maior. Sem dúvida que há nisso algo de muito humano e bom, mas fica a pergunta: será suficiente para realizar a missão que me cumpre levar a cabo na Terra?
Curiosamente, uma oração hindu torna clara a consciência desse imperativo ético, ao dizer: “Ó Deus, não deixes que os meus dias se terminem na Terra sem que eu cumpra aqui a minha missão.”
2. Nos diferentes relatos das chamadas religiões do Livro (embora o cristianismo não o seja do mesmo modo que o judaísmo e o islão o são), desde o início houve nos humanos tendências auto-centradas e egoístas: desejos de primazia, poder, riqueza, importância, chegando à marginalização ou destruição pura e simples do outro, do diferente de si (e por isso inferior), isto é: uma anulação da alteridade.
No ‘Génesis’, à pergunta de Deus: “Caim, onde está o teu irmão?”, a resposta foi “Sou eu porventura o guardião de meu irmão?”
No evangelho, a mãe dos filhos de Zebedeu (e é chocante aqui a forma patriarcal de nomeação da mulher) pergunta a Jesus se, no Reino, os seus filhos poderão vir a sentar-se um à sua direita e outro à sua esquerda.
Este impulso egocêntrico, ‘famílio-cêntrico’, faz parte dos humanos, como aliás também, de outros modos, de todos os animais não-humanos.
Nos humanos, porém, a consciência de si no universo, no Planeta-Terra, é uma construção cultural essencial, que precisa ser elaborada na temporalidade. Dela esperar-se-ia que resultasse um sentido de responsabilidade pela vida: dos próximos aos longínquos, dos seres vivos – animais, plantas – a tudo o que forma a Terra que habitamos. Esse trabalho é o que, enquanto humanos, nos cumpre realizar de muitas maneiras. E o primeiro passo da nossa responsabilidade será o de interrogarmos a civilização actual, toda ela centrada no imediato, no consumo fácil e no desperdício, nas desigualdades chocantes que daí decorrem, nas relações sem compromisso, no instantâneo gozo sem amanhã, para actuarmos no sentido de uma sua conversão, na parte dela que nos cabe.
Na realidade, se todos os humanos erguerem a sua vida a uma consciência esclarecida e solidária – e mais ainda aqueles que acreditam num Horizonte final para a História em Deus – então um salto quântico, qualitativo, poderá acontecer na vida planetária.
3. Entre tantos exemplos gritantes no mundo de hoje, podemos ter presente um dos muitos casos que – houvesse atenção à vida e responsabilidade humana – poderiam ser evitados.
Trata-se das consequência terríveis que tem tido uma invenção do século XX, de início considerada genial: a invenção do plástico. A partir de bens fósseis (o petróleo), na altura sem uma consciência clara de que o recurso era limitado, começaram a ser criados cada vez mais objectos em plástico: bens de 1ª necessidade, que substituíram os barros e as louças, e isso num crescendo assustador. Milhões de coisas úteis e supérfluas foram aparecendo: recipientes, aparelhos, máquinas, mobílias, sacos, toalhas, palhinhas para líquidos, brinquedos, enfim, mil e uma coisas para os mais variados fins. Não se tratando de produtos duradoiros, mas na maior parte dos casos de materiais descartáveis, tais produtos aumentaram substancialmente o lixo local e global, de tal maneira que muitos desses produtos se foram acumulando no fundo dos oceanos, constrangendo a vida selvagem dos habitantes marinhos. Muitos destes morrem sufocados dentro de sacos plásticos; outros engolem pequenas partículas plásticas resultantes de peças de maior dimensão desfeitas pela energia aquática, e assimilam no seu organismo esses elementos estranhos, que por sua vez irão fazer percurso dentro da própria cadeia alimentar de outros animais e, a partir deles, dos próprios humanos.
Em 1997, cientistas descobriram a primeira ilha de lixo no giro oceânico do Pacífico Norte, não se conseguindo encontrar um único espaço que não estivesse coberto de lixo. Os giros, que são sistemas de correntes rotativas, aprisionam os detritos marinhos em grandes aglomerados. Dois anos depois viu-se que o lixo aí preso supera a quantidade de plâncton que alimenta a vida oceânica. Essas ilhas de lixo continuam ainda a crescer e os animais sofrem com o excesso do que é despejado nos oceanos e rios. Acredita-se que cerca de 267 espécies marinhas estejam a ser ameaçadas pelo plástico. Os detritos podem sufocar, deformar e ferir animais que, por acidente, os ingerem ou arrastam. Milhares deles são afectados, só porque uma pessoa não foi capaz de colocar a garrafa de plástico no ecoponto… (noticiado na net: ‘lixo de plástico’). E é por esse descuido de tantos de nós que esse lixo vagueia e se deposita sem fim no mar, com efeitos claramente perversos.
Um estudo recente mostra, por exemplo, o que resulta do uso de palhinhas plásticas, em todo o mundo oferecidas com bebidas: depois do seu uso, são em geral deitadas ao chão ou nas areias das praias… E são assustadores os dados que ouvimos da Quercus sobre o que se passa anualmente em Portugal: “721 milhões de garrafas de plástico; 259 milhões de copos de café; 1 milhar de milhões de palhinhas; 40 milhões de embalagens de fast food; 10 mil milhões de beatas de cigarro, quase tudo isto no fundo dos mares.
E este tipo de descartáveis não só representa um incalculável desperdício de recursos, mas também um elevado custo para os contribuintes, nos impostos para tratamento de resíduos que em média constituem 51% do lixo encontrado em praias europeias.”
São desperdícios que contribuem para destruir a harmonia do ambiente e as próprias vidas animais e humanas, sem que a maioria das pessoas disso tenha consciência.
Ora seria algo muito fácil de evitar, se fôssemos mais responsáveis pelo futuro da Terra e pelas gerações a vir. Uma pequena decisão, política e ética de impacto local e global, com efeitos eficazes a longo prazo, seria, por ex., deixarmos definitivamente de usar palhinhas de plástico, fazendo campanha contra a necessidade da sua produção.
O Planeta, nossa Casa Comum, como lhe chamou o Papa Francisco, está em risco de sobrevivência, e pequenos gestos como este, de forma decisiva e resistente, poderão ir mudando o estilo das nossas vidas.
4. Urge pois essa nossa transformação interior em cada um e cada uma de nós; imperiosa é uma metanoia, ou conversão, que incite a iniciativas para o bem de toda a gente: iniciativas sociais, políticas, culturais, para um mundo mais justo, de paz e alegria, local e globalmente.
A própria ekklesía (ecclesia, em latim) com a vocação prioritária de dedicação ao bem comum e de uma vida entregue, despojada, desprovida de egoísmo, poderá tornar-se testemunho vivo de que Deus existe e de que a Humanidade é destinada a ser uma comunidade de irmãos e irmãs, de todas as regiões do mundo, de todas as cores, de todas as culturas e religiões, todos gozando do justo direito a uma real qualidade de vida.
Sem isso, não poderemos considerar-nos civilizados, nem plenamente humanos. E muito menos cristãos praticantes.
É que a política diz respeito à vida individual e colectiva da cidade, em grego: polis. Por isso é que ser cristão é ser político:
Nestes breves versos, Thiago de Mello, poeta brasileiro do séc. XX, lança-nos um desafio, a cristãos e a todos os habitantes da Terra:
Aqui está a minha vida
Pronta para ser usada.
Vida que não se guarda
Nem se esquiva, assustada.
Vida sempre ao serviço
Da vida.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.