O Livro do Êxodo traz, no seu capítulo 3, o conhecido relato do encontro de Moisés com Deus no Horeb. O modo como é construído transporta-nos, desde logo, para as antigas hierofanias, da divindade que se manifesta aos humanos em locais altos ou naturalmente imponentes, conduzindo à perceção da sua presença por meio de sinais prodigiosos que suscitam em simultâneo o medo e o fascínio. A sarça ardente suscita a atenção de Moisés, leva-o à consciência da sacralidade do lugar em que se encontra, fá-lo reverente, mas ao mesmo tempo acolhedor da alteridade de um Outro que se revela.
Como tantas outras hierofanias e relatos de vocação, também aqui o texto procura dizer por metáforas e imagens o encontro profundo e sempre único que acontece quando Deus se cruza no caminho dos homens e das mulheres, no concreto da sua vida e da sua história, das suas procuras mais dolorosas e verdadeiras de sentido. O texto fala da vocação de Moisés, mas, sobretudo, ilumina e dá o sentido à epopeia que nele se constrói em torno do caminho que levará o povo da casa da escravidão para a Liberdade, para uma terra onde corre leite e mel. Uma história que, na verdade, é em primeiro lugar, fruto da vontade e da iniciativa de Deus, que escutou as preces do seu povo, conhece os seus sofrimentos e deseja para ele um futuro de paz e de liberdade. Ele é um Deus pessoal, um Deus de encontros – o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, agora também de Moisés -, capaz de se compadecer porque escuta e se dispõe a conhecer todo o sofrimento e todo o grito de dor, venha ele de onde vier.
Ele é um Deus pessoal, um Deus de encontros – o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, agora também de Moisés -, capaz de se compadecer porque escuta e se dispõe a conhecer todo o sofrimento e todo o grito de dor, venha ele de onde vier.
Foi com este texto que vivemos, entre 1 de Setembro e 4 de Outubro, mais um Tempo da Criação, num convite a, como Deus, escutar, (re)conhecer e acolher esse grito que continuamente brota da criação, seja ele o da terra explorada e destruída pela ganância desenfreada, pelo consumismo e pela busca de poder dos Homens, seja o das espécies em vias de extinção ou dos mais frágeis e pobres que constituem as primeiras vítimas das alterações climáticas e de formas de vida e de políticas estruturalmente contrárias às lógicas da solidariedade, da justiça e da fraternidade. Continuamos ainda a olhar estas realidades como estranhas ao nosso compromisso cristão, não questionamos ainda suficientemente os nossos estilos de vida e as nossas opções concretas de todos os dias. Se levarmos a sério este grito, se nos dispusermos verdadeiramente à escuta, teremos de iniciar um caminho pessoal e nas comunidades em que nos integramos, sobre o modo como usamos os recursos que temos à nossa disposição, as nossas opções energéticas, de construção e de consumo, as políticas de transporte e de urbanismo, o apoio a formas mais sustentáveis de produção ou de comércio justo, de uma solidariedade efectiva para com os mais frágeis e pobres, abrindo espaço para que a sua voz seja escutada e respeitada.
Os apelos a um assumir efectivo de uma escuta diligente e consequente deste grito, tanto mais urgente quanto se joga aqui o próprio futuro desta casa comum que é o mundo em que vivemos, têm-se repetido aos mais altos níveis, incluindo o das Igrejas cristãs que, desde há muito, inseriram a questão na sua agenda de prioridades em ordem ao testemunho comum e credível do Evangelho. Aqui se incluía própria Igreja Católica, em particular com o pontificado do papa Francisco, onde a questão da ecologia integral e do cuidado pela criação mereceu pela primeira vez uma Encíclica própria, a Laudato Si’ (2015), desdobrada, mais recentemente, na Exortação Apostólica Querida Amazónia (2020) e na Carta Encíclica Fratelli tutti (2020). A ética do cuidado que nelas se tece só pode acontecer quando há uma disposição para a escuta, e uma escuta que se torna universal, abarcando toda a criação e aberta a uma colaboração com todos os homens e mulheres de boa vontade.
Aliás, este caminho tem-se também afirmado em termos ecuménicos, como uma possibilidade e uma urgência no nosso testemunho comum como cristãos. Basta relembrar a mensagem conjunta assinada pelo papa Francisco, pelo patriarca Bartolomeu, da Igreja de Constantinopla, e pelo arcebispo de Cantuária, Justin Welby, em nome da comunhão anglicana, nas vésperas da COP 26, ocorrida em Glasgow de 1 a 12 de Novembro de 2021. Também em Portugal as Igrejas e comunidades cristãs têm vindo a apostar neste trabalho conjunto em torno do cuidado pela criação, por meio do Memorando de Entendimento assinado em Junho de 2021, que integrou o Conselho Português de Igrejas Cristãs (Igrejas Lusitana, Metodista e Presbiteriana), a Aliança Evangélica, a Conferência Episcopal Portuguesa, a Associação A ROCHA PORTUGAL e a REDE Cuidar da Casa Comum. O projecto “Eco-Igrejas Portugal” daí resultante prepara entretanto uma proposta concreta de ecocertificação das comunidades cristãs, a par com iniciativas com vista à formação nesta área dos diversos agentes pastorais. Do mesmo modo, diversas celebrações ecuménicas têm congregado na oração comum em torno da questão ecológica, como aconteceu em Lisboa, no passado dia 2 de Outubro, na catedral lusitana de S. Paulo, em Lisboa.
Na senda do Concílio, precisamos de voltar a olhar com empatia para este mundo, assumindo como nossas as suas alegrias e esperanças, tristezas e angústias.
Todos estes sinais de esperança de um caminho que se vai construindo com perseverança e alegria, não podem, contudo, escamotear o muito que há ainda para fazer e como nos precisamos de exercitar na escuta dos apelos que nascem da realidade que nos rodeia. Precisamos de aprender com o Deus de Moisés a escutar o apelo dos que sofrem. Um Deus que em Jesus assumiu essa escuta e essa empatia com a condição humana até ao extremo, fazendo da nossa carne frágil e pecadora o caminho da nossa própria salvação e o lugar da sua mais plena revelação. Doravante, é na carne da Humanidade e na carne do Mundo que devemos reconhecer o seu rosto: nas lágrimas dos que choram, na solidão dos que estão abandonados ou presos, na miséria dos famintos e sedentos, despojados de roupa e de dignidade, na criação que geme sempre que nela se atenta contra o advento da plenitude dos novos céus e da nova terra.
Na senda do Concílio, precisamos de voltar a olhar com empatia para este mundo, assumindo como nossas as suas alegrias e esperanças, tristezas e angústias. É preciso que elas encontrem eco no nosso coração, para que possam fazer nascer atitudes novas, comprometidas, consequentes. Tal como Deus prometeu a Moisés, é preciso dar um futuro àqueles e àquelas para quem somos enviados, em nome de um Deus que se importa, que quer cuidar, que se compadece, que quer voltar a oferecer para todos e todas uma terra onde corre leite e mel. Uma casa onde todos tenham lugar, um jardim onde ele possa passear com os Homens ao cair da tarde.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.