As eleições europeias já passaram e, como é comum nos tempos que correm, rápidos e frívolos, parece que nada de especial se passou. O choque com a elevadíssima taxa de abstenção – a aproximar-se dos 70% de eleitores que não votaram – deu origem a um jogo de passa-culpas, em que políticos culparam jornalistas, jornalistas culparam políticos e ambos culparam os eleitores. Qual foi o resultado de tudo isto? O completo esquecimento até às próximas eleições.
Por volta do meio-dia, soou o alarme: Portugal era dos países em que se tinha votado menos. Por algum motivo que me escapa, havia um tom de surpresa com o desinteresse dos portugueses pelas instituições europeias. O facto de em eleições anteriores a abstenção ter sido igualmente muito elevada parecia passar-nos ao lado, como uma lembrança incerta de um passado longínquo. E aposto que demos desculpas semelhantes: os candidatos não falaram da Europa numa campanha para as europeias; os jornalistas apostaram nos fait-divers; estava demasiado calor ou choveu, etc. O que faz com que tenhamos a mesma reacção sempre que há eleições e a abstenção vence por maioria?
A razão parece ser sobretudo psicológica e nasce do impulso de culpar a enorme percentagem de eleitores que não vota. A culpa é sempre dos outros, sendo que estes outros são uma massa homogénea de pessoas desinteressadas e apáticas. Para os comentadores e políticos que resolveriam o problema da abstenção com a imposição do voto obrigatório, os abstencionistas que só querem é praia desde a hora de abertura das urnas até ao seu fecho deviam pagar caro por não exercerem um direito, que, dizem sem explicar, “é também um dever”.
Os adeptos do voto obrigatório vêem os abstencionistas como pessoas preguiçosas, crianças indisciplinadas; tudo gente, enfim, que precisa de corrigir a sua conduta.
Os adeptos do voto obrigatório vêem os abstencionistas como pessoas preguiçosas, crianças indisciplinadas; tudo gente, enfim, que precisa de corrigir a sua conduta. Não passa pela cabeça destas pessoas que alguém “não queira sequer lá pôr os pés” porque entende que o seu voto contribui apenas para manter um estilo de vida de uma minoria; porque não tem em quem votar; porque não conhece o trabalho que os eurodeputados fazem; porque não confia nas instituições. Porém, a abstenção como protesto não é compreendida. É nesta altura que dizem que é mais sério ir lá fazer uns gatafunhos no boletim de voto.
O argumento psicológico é confortável porque permite reduzir pessoas diferentes entre si, como todos somos, a um único rótulo de irresponsáveis. É também útil porque permite que uns se sintam superiores aos outros, fazendo deste modo que o erro de interpretação se perpetue, levando por fim ao esquecimento daquilo que se repete em todos os actos eleitorais, com variações, mas sem excepção. Se assim for, então estamos perante um problema sem solução à vista, o que nos deve fazer pensar se estaremos perante um problema.
Uma forma de testar se a abstenção é ou não um problema – contrariando interpretações psicológicas, opiniões inflamadas e juízos morais sobre o assunto – está, no meu entender, em adoptar uma abordagem pragmática. Susana Peralta, num artigo no Público, apresentou soluções interessantes depois das eleições europeias, que não passam por juízos de valor, mas pela ideia de que as pessoas não votam porque por vezes não têm a possibilidade física de o fazer. “Organizar as eleições em mais do que um dia, permitir o voto antecipado, por correio ou por procuração” são algumas das soluções que apresenta com as devidas justificações sensatas e partindo de estudos que as sustentam. Testar estas hipóteses concretas seria útil para sabermos afinal se as pessoas não votam porque muitas vezes simplesmente não o podem fazer.
Antes de chegarmos a conclusões apressadas, há que dar todas as possibilidades de votar aos eleitores. Se não ainda podemos concluir precipitadamente que os políticos não estão interessados em mudar nada, porque lhes interessa a retórica da culpa do eleitorado apático e distante da política, sobretudo aqueles a quem interessa a agenda do voto obrigatório. Basta olhar para países como o Brasil, a Argentina ou a Grécia, todos com graves problemas de corrupção, para percebermos que, se a abstenção for um problema, não é essa a solução.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.