Imaginem que agora vos dizia que iam remover os muros da escola mais próxima. Não existiriam limites físicos fora do edifício. O que imaginam que aconteceria? Suponho que perigo? Caos? Porquê? Porque se trata de crianças, certo? E ainda não sabem bem os “limites do certo e errado, do que podem e não podem fazer? Ou pelo menos do que devem ou não? Vamos assumir que isto é verdade.
Vamos fazer agora este exercício com adultos. Mas, em vez de uma escola, apliquemos este cenário a uma empresa. Mas neste caso não seriam muros físicos a ser removidos, porque esses adultos passam-nos, mas regras escritas e gestores de cada equipa. Eliminaríamos os claros “muros” ou limites do que se pode e não pode fazer. O que aconteceria? Caos novamente? Desorganização e confusão? A empresa pararia?
Creio que não estou muito longe do que pensaram. Mas é curioso, porque estamos agora a falar de adultos. São os adultos as novas crianças? Precisamos também nós, adultos, de supervisão? Porquê? É que as respostas acima já não parecem fazer sentido. É curioso, olhando para a natureza, verificar que até as formigas conseguem trabalhar com um grau de autonomia elevado.
Trabalho numa empresa que desafia este medo. Não temos propriamente gestores, nem títulos, porque não queremos ter propriamente rótulos que definem o que cada um faz, e, assim, evita-se o pensamento “isso não faz parte do meu trabalho”. Basicamente tratamos todos como adultos. E, se isto parece ser um salto radical, a verdade é que a maioria de nós estamos habituados a tomar decisões. Por exemplo: quando saíram de casa a última vez, seja para o trabalho ou por lazer, lembram-se de tudo o que fizeram até esse momento? O despertador, o duche, a escolha da roupa, o pequeno-almoço… os mil pequenos passos e as decisões tomadas até ao momento de sair. Presumo que o tenham feito sem necessidade de supervisão.
Talvez por poder viver algo que prova o contrário sinto, com tanta tristeza, que não medimos a autonomia no nosso sistema educativo, algo essencial para a vida adulta.
Estas são, no entanto, decisões simples e diárias. Podemos tentar pensar em algo mais complexo: quando escolheram o destino de férias ou definiram como ia ser a festa de Natal. Provavelmente pediram opiniões ou colaboraram com outros elementos da família para definir parte dos planos, de acordo com o prazo e o orçamento que tinham. No fundo, fizeram gestão de projeto.
Isto daria um artigo em si, mas o interessante nesta espécie de preâmbulo é perceber que funcionar desta forma desafia tudo o que aprendemos até aqui. Fomos habituados a considerar que a supervisão piramidal e as regras definidas por esta são um elemento essencial, sem o qual tudo falhará.
Talvez por poder viver algo que prova o contrário sinto, com tanta tristeza, que não medimos a autonomia no nosso sistema educativo, algo essencial para a vida adulta. Damos toda a relevância à avaliação do conhecimento adquirido e muito pouca, ou nenhuma, ao processo, como realçou Neil DeGrasse Tyson, num discurso. Numa interessante reflexão, o famoso físico pergunta: se fossem vocês a fazer o recrutamento numa empresa e a pergunta fosse “qual a altura da torre onde estamos agora” que candidato estariam mais inclinados a contratar:
O candidato que, em cinco segundos, diz: “Esta torre mede 120 metros. Ainda bem que decorei a altura de todas as torres desta cidade, senão não faria ideia!”? O candidato que não sabe, mas pede alguns minutos para ir ao exterior e medir a sua sombra e a sombra do prédio e fazer um rácio entre ela, chegando ao valor de 130 metros?
A resposta do primeiro candidato está correta; a do segundo está factualmente errada. Mas qual o candidato que vos daria mais confiança para desafios novos? O ensino valoriza a resposta 1. A “realidade” irá ter muitos momentos em que precisará do processo do candidato 2. É este treino que faz com que, ao encontrar uma situação nova, se consigam utilizar as ferramentas para chegar a uma solução, ou seja, ter um pensamento novo, para uma situação nova.
Provavelmente nem todos concordam com a minha opção, mas Neil DeGrasse Tyson dá outro exemplo interessante para a reflexão. O momento em que pergunta à sua irmã: “Onde queres jantar?” e ela responde com a pergunta: “Quais são as opções?”, como se de um teste de escolha múltipla se tratasse. Deixamos de ter perceção das dificuldades de divergir consoante o modo de agir com que fomos educados.
Pode ser o caso de valorizarmos o que mais facilmente medimos em vez de medirmos o que valorizamos. Mas autonomia é apenas um dos ângulos. Empatia, capacidade de trabalho em equipa e de autocrítica, entre tantas outras características, são a chave para uma melhor vida de adulto, o que por sua vez, cria condições para uma sociedade melhor. Uma sociedade em que a antiga divisão entre colarinho azul e branco se esbate a cada dia. Com a generalização do ensino, já é tempo de perceber que não há pessoas só com braços e outras só com cérebro, todos podemos usar ambos. O modo de aprender e agir ainda se baseia no tempo em que grande parte da população não tinha acesso à educação e uma elite educada “geria” a maioria.
O modo de aprender e agir ainda se baseia no tempo em que grande parte da população não tinha acesso à educação e uma elite educada “geria” a maioria.
Podendo parecer contraditório, mas para ser claro, afirmo que uso regras com os meus filhos. Um caso simples são as regras de etiqueta à mesa. O ponto importante é perceber que elas não têm valor em si mesmas, mas realçam aspetos da convivência em comunidade que é vital perceber e assimilar. As primeiras regras de etiqueta, longe do snobismo com que são hoje associadas, indicavam que não devíamos arrotar à mesa ou cuspir. Ao indicar essa regra, o que me interessa não é que a memorizem, mas que conversemos sobre porque não o devemos fazer. É fácil perceber que a regra por si não tem valor. Bastará viajar para alguns países asiáticos para perceber, por exemplo, que não arrotar é que é uma falha.
Neste caso, o processo passo por perceber que existe uma regra questionar a sua razão de ser e oensar como a devemos aplicar. As regras são bons guias, mas percebê-las e saber quando quebrá-las tem muito mais valor. O conhecimento, só por si, seria apenas saber a regra e aplicá-la, apenas porque é uma regra.
Foi fora das salas de aula que aprendi, realmente, de forma autónoma. A melhor sala de aula foram os campos de férias, no meu caso os Campinácios. Num campo de férias rapidamente se percebe que tudo que escrevi acima – o que tínhamos pensado, preparado, imaginado e sonhado – não bate com a realidade. É preciso adaptar, improvisar e ter noção de que cada decisão tem implicações bem reais. A minha formação académica ajudou-me a ter conhecimento técnico. Mas adivinhem o que me deu mais ferramentas para trabalhar com outras pessoas, em momentos críticos, por exemplo, quando os clientes nos exigem mais, quando erramos ou quando o prazo é impossível e tudo parece colapsar?
Eu tive esta oportunidade, mas quantos não terão nada semelhante? Simon Sinek tem uma citação mais provocadora, que exigiria algum contexto para o qual já não tenho espaço: “As regras são para os líderes preguiçosos“.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.