Estando nós ainda em ambiente pascal, seria inevitável abordar, antes de tudo, a questão da Ressurreição; para além disso, porque “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé” (1Cor, 15,14). Mas não vou fazê-lo de forma direta, até porque a Ressurreição é “algo” não captável diretamente. Proponho uma aproximação a partir do que parece ser o seu contrário: precisamente a morte. Parto, por isso, de uma noção de Ressurreição que a situa numa relação especial entre a morte e a vida, sobretudo no âmbito daquilo que legitimamente podemos esperar.
No entanto, uma aproximação ao “fenómeno” da morte é tudo menos unívoca. Seguiremos, por isso, um caminho que nos levará através dos vários significados daquilo que nos é mais certo, mas que em realidade ninguém experimenta. A morte é, antes de tudo, o fim de uma vida, do ponto de vista biológico. Enquanto tal, não é problemática para os humanos, pois seria impensável a nossa existência sem um fim biológico; aliás, em certo sentido – muito reforçado em contexto bíblico – ela constitui uma espécie de proteção contra a pretensão humana de poder absoluto, estabelecendo uma igualdade fundamental entre poderosos e não poderosos. Por outro lado, ao retirar alguém do nosso campo de comunicação corpórea, não deixa de ser um problema, que legitimamente esperamos seja algum “dia” superado. Relativamente a esta primeira dimensão da morte, a Ressurreição não é o regresso à vida biológica – reanimação, revivificação ou ressuscitação – que passaria a não ter fim; mas poderá significar a recuperação de um modo de comunicação com os que morreram, mesmo que não nos seja possível determinar como.
Mas a morte pode ter vários rostos. A morte de Jesus foi violenta e implicou a vitimação de um inocente. Nesse sentido, a cruz representa, antes de tudo, o grau de maldade a que pode chegar o mecanismo vitimador. A morte deixa de ser apenas o fim da vida biológica, para reunir em si toda a maldade de que nós, humanos, somos capazes. Enquanto tal, não tem justificação nem bondade possíveis. É condenável e, por isso, abre à legítima esperança de que não tenha sobre nós a última palavra, mas que haja possibilidade de uma vida em que a vitimação do inocente seja superada.
O problema do mal, simbolizado na morte por vitimação, aproxima-nos da questão da ausência de Deus – na experiência de que Deus nos abandona mas, sobretudo, na experiência de que nós O abandonamos. Um dos sentidos dessa ausência pode ser interpretado como morte. Poderíamos chamar-lhe, biblicamente, morte eterna, coincidente com o estado de pecado e representada simbolicamente no sheol ou nos infernos. É neste sentido específico que o pecado leva à morte. E esta é a “pior” dimensão da morte. Na morte por vitimação, a vítima pode esperar a sua reabilitação; mas o vitimador, mergulhado no pecado do seu ato, está condenado à morte eterna – ou seja, à dimensão da ausência de Deus ou do inferno. A não ser que seja perdoado.
O problema do mal, simbolizado na morte por vitimação, aproxima-nos da questão da ausência de Deus – na experiência de que Deus nos abandona mas, sobretudo, na experiência de que nós O abandonamos.
A possibilidade do perdão conduz-nos ao núcleo da relação entre vida e morte, como possibilidade de Ressurreição. Per-doar é dar; e a uma dádiva corresponde sempre uma receção, caso contrário não se realiza. A vida que nasce do perdão é uma vida que se articula na dinâmica entre dar e receber. Quem perdoa, dá a vida; que é perdoado, recebe a vida. Potencialmente, todos damos e recebemos a vida. Em rigor, a verdadeira vida é recebida, para ser dada. Uma vida que seja acolhida como dom e seja dada gratuitamente, é uma vida que garante a receção da vida. Mas dar a vida é morrer. Logo, a oposição entre morte e vida não é total.
Se relacionarmos entre si todas as dimensões da morte abordadas anteriormente, a própria vida biológica pode – ou não – se acolhida como dádiva. Se o for, abre-se o caminho para ser dada aos outros – ser dada no quotidiano da relação aos outros e ser dada como desfecho final da existência, até ao sacrifício da vida biológica, se for o caso. Mas a dádiva da vida tem muitas outras dimensões para além da vida biológica.
Foi em todas as dimensões referidas anteriormente – incluindo a biológica – que Jesus deu a vida na cruz. A cruz (de Jesus) significa, também, essa dádiva da vida. Na circunstância específica em que foi dada – livremente, por amor – incluiu a dádiva do perdão. Por isso, a dádiva completa da (sua) vida é também fonte da (nossa) vida, dada aos humanos, que assim são perdoados. Da morte (como doação da vida) surge, por isso, a vida (como vida dada e recebida). A morte, como ato supremo de amor, transforma-se por isso em vida – e a essa transformação chamamos Ressurreição.
Em rigor, a verdadeira vida é recebida, para ser dada. Uma vida que seja acolhida como dom e seja dada gratuitamente, é uma vida que garante a receção da vida. Mas dar a vida é morrer. Logo, a oposição entre morte e vida não é total.
Nessa transformação, a morte eterna – como resultado do pecado – dá lugar à vida eterna, como efeito do perdão. O humano, sujeito à morte eterna, recebe a vida eterna, como dádiva gratuita do perdão. A verdadeira dimensão da vida – que é a dimensão da existência (biológica ou não) na dimensão de Deus – é, por isso, vida dada e recebida.
Mas o que significa, da nossa parte, receber a vida? Basta estar aí, para que essa vida magicamente nos atinja? É certo que, em Jesus Cristo, Deus oferece a vida plena a todo o ser humano. Mas, para a receber, é preciso corresponder a essa dádiva. E o modo de correspondência coincide com o seguimento de Jesus, ou seja, está paradigmaticamente definido pela sua existência histórica.
A primeira condição para receber a vida é assumir que ela é uma dádiva, em todas as suas dimensões, e não algo merecido ou conquistado pelas capacidades de cada um. Só recebe a vida quem admitir que não é o seu proprietário e que não tem poder sobre ela (a própria e a dos outros).
Mas há mais: condição para receber a vida, segundo a dimensão de Deus – que é a dimensão da vida eterna em caridade – é a doação da vida, enquanto dádiva de si mesmo, quotidianamente, àqueles que nos surgem no caminho (especialmente aos que estão caídos na margem desse caminho). Em caso extremo, até à dádiva da vida biológica por eles. Em certo sentido, morrer é condição de vida; morrer para a pretensão de poder sobre a vida, para a receber como dom gratuito. Porque “quem quiser salvar a vida há de perdê-la…” (Lc 9,24).
E qual o lugar da vida biológica, no interior deste processo? É fundamental. Porque a definição de nós mesmos, enquanto identidade pessoal única e irrepetível, acontece precisamente como vida biológica. Cada vida é uma oportunidade única. Não há qualquer forma de modificar ou construir uma identidade pessoal – que acolhe ou recusa a vida, dando a vida ou guardando-a para si – senão no seu estatuto de vida biológica, como corpo que nos constitui únicos, de uma vez por todas. Por isso, a Ressurreição de cada um não pode prescindir dessa identidade construída no tempo de uma vida biológica. Não é, pois, simples imortalidade de uma entidade espiritual comum. É a possibilidade de vida eterna de uma pessoa, cuja identidade se formou como corpo. É a Ressurreição da carne – não o regresso à vida biológica, mas a sua transfiguração.
Fotografia de Lucas Myers – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.