A dificuldade de chamar a atenção para o tema árido do Orçamento de Estado pode ter levado alguma imprensa (senão mesmo toda) a lidar com a polémica do IVA a 6% nas touradas como se se tratasse de um fait divers. Marques Mendes foi a excepção, chamando a atenção numa semana para a guerra de poder que a este pretexto se instalava, com Carlos César e o grupo parlamentar do PS de um lado e António Costa com a Ministra da Cultura do outro, para logo na semana seguinte reforçar a ideia de que César tinha feito qualquer coisa como uma tomada de posição. Marques Mendes, se a memória e a audição não me falham, não falou em “guerra de poder”, embora seja disso que se trata. Também não referiu que César ganhou, mas foi o que aconteceu. E qual é a consequência de tudo isto? Um PS fragmentado? Costa debilitado? Uma ministra derrotada à chegada? Talvez nada, porque está tudo bem.
Não é estranho que tenha havido polémica no caso das touradas. O tema é sensível na sociedade portuguesa, o que é bom sinal. Falta, na minha opinião, coragem política para acabar com as touradas e ficámos a saber porquê: o Partido Socialista não quer. Entre o aficionado Manuel Alegre, que avalia o grau de entendimento sobre a poesia e a literatura por quanto se gosta ou não de touradas, e a bancada parlamentar socialista, que quis dar uma prova de vida para sacudir o pó de tantos anos sentada no mesmo sítio, temos um conjunto de pessoas com poder para mudar as coisas e que não quer que nada mude. São os mesmos, porém, que aprovaram em finais de Outubro uma lei que prevê o fim do uso de animais no circo, com “um programa de entrega voluntária de animais usados em circos, bem como uma linha de incentivos financeiros destinados à reconversão e qualificação profissional dos trabalhadores das companhias circenses (domadores ou tratadores) que entreguem voluntariamente os animais que utilizem”. Não seria bom adaptar esta ideia e reeducar os toureiros e as pessoas envolvidas nestas lides tradicionais e devolver os touros a lado nenhum?
Falta, na minha opinião, coragem política para acabar com as touradas e ficámos a saber porquê: o Partido Socialista não quer.
O “episódio”, passo o vocábulo pouco rigoroso, das touradas serviu para percebermos um certo modo de não funcionar dos partidos, mas também serviu para vermos que questões que nos são apresentadas como fait diverssão definitivas para as pessoas. Há muito que deixou de ser irrelevante se o touro sofre ou não. Há muito que não é indiferente que sustentemos um “espectáculo artístico” que consiste na tortura de animais criados para esse exclusivo efeito. Ficou claro no meio da discussão sobre quem deve pagar o quê – nós, tudo – que não há vontade política para acabar com as touradas em Portugal.
Aquilo a que assistimos, mais uma vez, foi à falta de convicção e ao desnorte dos deputados sobre uma questão que de facto não entendem e sobre a qual não têm interesse sequer em questionar. Numa mistura de ignorância, indiferença e cobardia, decidem não resolver uma questão ética contemporânea fundamental. Não percebem a importância civilizacional da vida dos animais, seres vivos não humanos, habitantes deste planeta, que são da nossa absoluta responsabilidade.
Há muito que não é indiferente que sustentemos um “espectáculo artístico” que consiste na tortura de animais criados para esse exclusivo efeito.
Não percebem o que é correcto fazer com os animais e o que não é correcto fazer com os animais. É, por exemplo, errado proibir os cães-guia com a desculpa absurda de que se trata de um abuso dos animais. Não podemos retirar os animais da participação na nossa vida. Uma tourada não é uma participação dos touros na nossa vida. Ter animais de companhia, que vivem do nosso afecto e respeito, faz parte da natureza humana. As pragas devem ser combatidas; os cães devem ser, por meio da esterilização, protegidos do caos das matilhas. As lutas de cães, de galos, não são convívio com os animais e por isso são proibidas. São, tal como as touradas, exploração. Talvez dito assim seja mais fácil perceber.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.