Que Império num tempo pós-colonial?

Enganam-se aqueles que pensam que, por não viverem num tempo colonial, não são afetados por esse período da história.

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
(…)
Quem te sagrou criou-te português
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Em abril deste ano, a promessa eleitoral do presidente da Câmara de Lisboa de construção do “Museu das Descobertas” suscitou um intenso e controverso debate. No cerne da discórdia estava o nome do eventual museu, por se considerar uma designação que expressa uma visão etnocêntrica do mundo.

Durante muito tempo fomo-nos habituando à narrativa epopeica dos feitos dos Portugueses. A nossa literatura, a música, tanto do que temos e somos enquanto povo bebe deste evento. Eaqueles que por feitos valorosos se vão da lei da morte libertandoecoam na nossa memória como modelos de heroicidade, como fonte de inspiração, nostalgia, orgulho. Mais recentemente, têm surgido diversos eventos e artigos de opinião questionando, confrontando ou atacando (há estilos para todos os gostos!) uma narrativa maioritária da nossa história, de quem somos enquanto povo português, e enquanto europeus. Algo que ontem parecia definido e inquestionável é hoje confrontado.

Num dos extremos, levantam-se vozes a reclamar a destruição de estátuas dos “heróis” do passado expansionista e colonial. Procuram, com isto, a substituição de uma narrativa colonial por uma outra disfarçada de inclusiva, mas igualmente totalizante. Revelam um qualquer ímpeto puritanista que ingenuamente acredita que, ao apagar todas as manchas de imperfeição, consegue escapar a um passado que todos herdámos.

Do outro extremo, escutamos os que temem pela destruição de uma identidade e, por isso, encobrem as manchas e nódoas da nossa história. Negligenciam a implicação real que estas continuam a ter nas nossas relações e sociedade. É estranho que estas mesmas vozes apareçam, muitas vezes, associadas à defesa de medidas restritivas e proibitivas em relação ao acolhimento de imigrantes e refugiados. Denota-se neste discurso uma certa obsessão com as origens, como se a fidelidade se traduzisse simplesmente na reprodução dos modelos do passado.

Abdicando de continuar a perguntar quem está certo ou quem está errado, talvez hoje a situação nos convide a colocar a questão de um outro modo. Num modo que tenha em conta que na vida não é possível traçar uma linha a separar os puros dos impuros, os certos dos errados, os bons dos maus. Por conseguinte, sugiro antes que perguntemos: qual a intencionalidade, validade e pertinência das afirmações em causa?
A mudança de pergunta não significa uma simples correção da escrita. Uma nova pergunta requer acima de tudo uma mudança de pressupostos. Não é meu objetivo discutir aqui o nome do museu. Considero um falso problema ter de escolher entre a coragem de um conjunto de homens que se aventuraram pelo mar adentro em cascas de noz e a cultura de domínio, subjugação e opressão do outro que – também – decorreu da expansão portuguesa. Interessa-me, sobretudo, perceber que pressupostos poderão estar na base deste conflito e sugerir um olhar diferente sobre os mesmos.

Considero um falso problema ter de escolher entre a coragem de um conjunto de homens que se aventuraram pelo mar adentro em cascas de noz e a cultura de domínio, subjugação e opressão do outro que – também – decorreu da expansão portuguesa.

1.     Ninguém é dono da verdade! Uma frase que, por ser um lugar comum, se torna banal. E o banal é desvalorizado. No entanto, continuamos, em muitas dimensões da nossa vida, a tratar a verdadecomo algo concreto e definido que podemos possuir. Reclamar para si a verdade é, em certa medida, querer ocupar o lugar de Deus. E a história recorda-nos que muitos dos que reclamaram para si o poder divino se tornaram totalitários. Dizer isto não é o mesmo que dizer que a verdade não existe.

2.     Todos somos afetados pelo tempo e lugar de onde falamos. A contingência é uma realidade à qual não conseguimos escapar. O contexto espácio-temporal, a própria história de vida, mas igualmente as conceções filosóficas que estão disponíveis no nosso tempo afetam as nossas hermenêuticas. Estas teorias oferecem-nos grelhas de leitura da realidade e ajudam-nos quer a iluminar outros aspectos menos claros, quer a desconstruir aparentes coerências. Todavia, estes instrumentos de leitura são histórica e linguisticamente condicionados e, por isso, não devem ser absolutizados. O que existe não é propriamente a história em estado puro, mas hermenêuticas da história. Isso não quer dizer, contudo, que não devam estar igualmente sujeitas a critérios de aferição de validade.

3.     A história não é algo que vive no passado apenas. Francis Schüssler Fiorenza, teólogo e professor de teologia na Universidade de Harvard, explora a importância da ação e da experiência presente como lugar de interpretação do passado e da tradição e, neste contexto, desenvolve o critério da “retroductive warrant.” A expressão “retroductive warrant” tem que ver com a validade e fecundidade de uma hipótese, ideia ou teoria perante os dados disponíveis. Apoiado no filósofo da ciência Ernan McMullin, Fiorenza alude a um possível paralelismo entre este critério e o uso da metáfora pelo poeta. A metáfora explora o que não foi ainda bem entendido e, através de uma sugestão criativa, acaba por iluminar, não só a experiência do passado, mas também as suas implicações no presente e futuro. Como exemplo, Fiorenza sugere o papel da teologia feminista. A experiência e a voz das mulheres na Igreja é hoje cada mais entendida como uma dimensão necessária e fundamental da e na Igreja. Porém, nem sempre assim foi. Esta mudança deve-se em muito ao trabalho desenvolvido pelas teologias feministas que, por confrontarem categorias existentes dominantes, foram durante muito tempo censuradas, ridicularizadas ou negligenciadas. O papel e experiência das mulheres é esta “retroductive warrant” que permite, não só um outro olhar sobre a história, reconstruir e rever a tradição, mas também apresentar novos modelos e possibilidades de caminho que conduzam a um enriquecimento  da Igreja  e de toda a toda humanidade.

4.     O confronto não é necessariamente mau. Pode ser ocasião de mais verdade. No confronto com o outro, não é só o outro que se revela, mas eu também me descubro. De acordo com o filósofo Walter Benjamim, o passado histórico  está sempre a ser reconstituído no presente. E o motor deste processo é o confronto de posições. A identidade não é estática. Não se trata de algo que sempre foi, é, e sempre será. Isto é válido não só para nós enquanto pessoas, mas também enquanto comunidade, coletividade ou povo.

Enganam-se aqueles que pensam que, por não viverem num tempo colonial, não são afetados por esse período da história. Em suma, esta humildade social implica que aceitemos que as nossas conceções e, no caso, a nossa narrativa coletiva enquanto povo português, estejam sujeitas a um projeto contínuo de revisão e correção.

O dinamismo faz parte da existência humana e abre o nosso entendimento a infinitas possibilidades. Esta constante reconstrução do significado requer humildade e capacidade de auto-crítica. Neste caso concreto, a humildade pede-nos que reconheçamos que as categorias que usamos para entender o passado são influenciadas pelos nossos contextos, mas também  pelas estruturas de poder e dominação que prevalecem em cada época. E algumas narrativas do passado português, em particular relativamente ao período expansionista, são marcadas por uma visão etnocêntrica e por um poder colonial, que não desapareceu aquando das declarações de independência das colónias portuguesa e o fim das estruturas de governo colonial. Trata-se de uma visão que, por ter sido absorvida por um modo de estar e agir, já não precisa das estruturas para continuar a viver. E, por isso, continua ainda presente no nosso contexto. Enganam-se aqueles que pensam que, por não viverem num tempo colonial, não são afetados por esse período da história. Em suma, esta humildade social implica que aceitemos que as nossas conceções e, no caso, a nossa narrativa coletiva enquanto povo português, estejam sujeitas a um projeto contínuo de revisão e correção.

Posto isto, será que a história da expansão marítima portuguesa se resume a uma história de colonização, império e opressão? Talvez também tenha sido isso, e mais. O museu será, pois, uma oportunidade para Portugal dar testemunho de uma humildade social que se abre às diferentes narrativas que fazem parte da sua história. A arte tem, pois, este poder de transformar e ultrapassar divisões aparentemente inconciliáveis.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.