Quando, há uns meses, o meu filho mais velho me pediu que lhe indicasse um livro para ler, sugeri-lhe “O Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago. Ler um Prémio Nobel pareceu-lhe um desafio interessante, e não se deixou intimidar pela ausência de alguma pontuação ou diálogos separados por parágrafos e travessões. A minha proposta de leitura, no entanto, nada teve que ver com o reconhecimento da Academia Sueca (justíssima, em minha opinião), muito menos com o estilo do autor ou a análise formal do texto. O meu objetivo, quando lhe depositei o livro nas mãos, foi o de poder conversar com ele sobre aquilo de que o ser humano é capaz em situações-limite, ou como a “cegueira” pode ser uma “praga”. O livro é distópico, é certo, mas há questões que nos obrigam a refletir sobre o presente: e se fosse connosco, aqui e agora? Como reagiríamos? Estaremos nós assim tão longe de passar por uma situação que nos obrigue a testar os nossos instintos? A pôr em causa os nossos valores?
Não sou uma mãe alarmista, mas também sei que não posso fechar os meus filhos numa bolha, e que, em casos limite, poderei não ter a força de Guido (Roberto Begnini), em “A Vida é Bela”, para convencer um filho de que a maior barbárie não passa de uma brincadeira… As televisões mostram-nos diariamente como o dia-a-dia de tantos milhões de pessoas, um pouco por todo o mundo, é feito de medo, revolta, intolerância, violência e morte, a que, num mundo global, ninguém pode ficar indiferente. O medo faz extremar posições, mas o medo de vir a ter medo também, e voltam a surgir em cena líderes e forças políticas que prometem a paz e a prosperidade, exigindo-nos em troca a nossa liberdade, mas também a nossa própria humanidade e os valores que lhe subjazem. Para onde caminhamos, afinal? Como chegámos até aqui? Que desafios, antes inimagináveis por pais como eu, terão de enfrentar os nossos filhos, no futuro? Como ajudá-los? Como ensinar-lhes a lidar com eles, sem porem em causa todos os valores que procuramos transmitir-lhes, no nosso dia-a-dia?
Nos livros que recomendo aos meus filhos, ou que leio com eles antes de irmos para a cama, vamos procurando pistas para lidar com o mundo que nos rodeia. Ora falamos de emoções, ora de medos e reações. Somos convocados a tentar entender as personagens e a forma como elas se movem, mas também a pensarmos como seríamos nós na pele delas, neste ou naquele cenário. Entendemos a História e os percursos, assim como os padrões que se mantêm e tendem a repetir-se no tempo, à custa de feridas mal curadas ou do rancor que ficou no lugar da aprendizagem. Os livros ensinam-nos que uma mesma história pode ganhar outros nomes e formas, mas não deixa de conter nela os mitos fundadores e os arquétipos que estão em nós, mesmo que nas nossas profundezas mais recônditas, à espera do momento certo (ou errado) para acordarem. E que, por isso mesmo, é tão preciso estarmos alerta, com consciência de que nunca é assim tão difícil tornarmo-nos na pior versão de nós mesmos, se as condições o propiciarem.
Mas os livros ensinam-nos também que o caminho é feito de escolhas, e que todas elas, como labirintos, conduzem a determinados desfechos. Nos livros, como na vida, há encruzilhadas e mudanças abruptas. Há outras personagens que podem influenciar as nossas escolhas e mudar os nossos desfechos.
Mas os livros ensinam-nos também que o caminho é feito de escolhas, e que todas elas, como labirintos, conduzem a determinados desfechos. Nos livros, como na vida, há encruzilhadas e mudanças abruptas. Há outras personagens que podem influenciar as nossas escolhas e mudar os nossos desfechos. Porque os livros nos ensinam a perceber também a força das nossas ações e a força das nossas palavras, pelo que não há como não escolhê-las cuidadosamente, para sossegar ou agitar, para manter o que é bom ou ajudar a transformar o que já não nos serve ou não serve aos outros. E que há palavras que devem ser poderosos alertas para o que pode vir a acontecer. São inaceitáveis. Como há outras que exigem debate, mas com regras muito claras, sem se cair no erro de rebaixar as palavras do outro, ou até mesmo rebaixar o outro com palavras. A liberdade do discurso é exigente e implica, no mínimo dos mínimos, que termine onde começa a liberdade do outro. Por último, que há também palavras que precisam de ser inventadas, porque os livros permitem-nos acreditar igualmente na força da criatividade como resposta para os piores males e pesadelos.
Recorro às histórias – às que leio e às que escrevo – porque não sei se sei tentar mudar o mundo de outra forma. Pergunto-me, sem certezas, o que ficará nos meus filhos, depois de tantas histórias lidas e exploradas. Que história será a deles. E que histórias ajudarão eles a construir, com palavras e atos, e se isso transformará este mundo num lugar melhor. A única certeza que tenho é que se aproximam episódios desafiantes, e que nenhum esforço para tentar impedi-los, enfrentá-los ou resolvê-los, nossos ou dos nossos filhos, será em vão…
Acredito, por isso, que é tempo de os pais (e, com eles, toda a família), através de histórias ou de quaisquer outras formas que façam sentido nas suas vidas, reforçarem nos filhos os valores fundamentais que não podem faltar-lhes, perante os desafios. O autoconhecimento necessário para saberem o que têm para dar e o que, em cada um, interiormente, devem contrariar. O sentido crítico necessário para não se deixarem enganar. E a criatividade para procurarem novas soluções com mais sentido.
É tempo de os pais (e, com eles, toda a família), através de histórias ou de quaisquer outras formas que façam sentido nas suas vidas, reforçarem nos filhos os valores fundamentais que não podem faltar-lhes, perante os desafios. O autoconhecimento necessário para saberem o que têm para dar e o que, em cada um, interiormente, devem contrariar. O sentido crítico necessário para não se deixarem enganar. E a criatividade para procurarem novas soluções com mais sentido.
E, porque os pais não podem nem sabem tudo, e às vezes não existem mesmo famílias para o fazerem, é preciso que a escola consiga fazê-lo também. Que use a História para verdadeiramente entender a História e não deixar que ela se repita, naquilo que é inconcebível. Que a Filosofia não ensine só o que pensou cada filósofo, mas ajude verdadeiramente a pensar e a repensar o mundo. Que a Matemática contribua também para a descoberta de padrões nas ações do ser humano. E a Ciência e a Física explore os limites do que não podemos ultrapassar, sob risco de quebrar todas as leis que nos permitem sobreviver. Que a Geografia nos obrigue a olhar para um mundo global, que não podemos apenas mapear sem sermos solidário com quem lá vive. E que o Português, e as línguas em geral, nos ajudem a perceber a força dos atos e das palavras, e a força de cada um de nós, personagem, para transformar não só a nossa história pessoal, como também a história global…
Não conheço forma mais eficaz e duradoura para nos curar da “cegueira”, do que a Educação. Dá trabalho – ou, como escreveu Saramago, “o que queria era fingir outra preocupação, o que queria era não ter que abrir os olhos” -, mas há-de valer a pena…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.