Quanto ao óbvio, o melhor é mesmo ser dogmático

Querido leitor, não vá na cantiga: pegue num poema, abra a janela e ouça os pássaros, vá brincar com os seus filhos, passe um belo dia na montanha, tenha uma conversa sem utilidade e contemple um belo quadro.

Houve o dia – e não faz muito tempo – em que o que era verdadeiro era verdade e o que era falso era falsidade. Nesse bel tempo, algo verdadeiro não era falso e algo falso não era verdadeiro. Nesses dias saudosos, o importante era central e o supérfluo era… supérfluo. Os amigos podiam juntar-se e discutir o que era superficial, porque, quanto ao importante, o assunto estava resolvido. Hoje, porém, não é assim. «Os gostos não se discutem», dizem eles; mas dizem mal… porque, se não formos discutir aquilo que é subjectivo, o que nos resta para discutir? Discutimos o que é objectivo e fazemos da verdade uma opinião. Parece-me um triste paradoxo que, na era científica, a palavra “verdade” nos dê alergia; que “facto” seja quase um insulto; e que “ser razoável” seja sinónimo de “ser simplista”.

Talvez o leitor creia que estou a exagerar – bendito seja o leitor. Mas permita-me que lhe diga o que creio: assim pensa o leitor porque ainda não abandonou o grande movimento filosófico do Bom Senso e ainda não se deu por derrotado diante do vírus do subjectivismo. Mas esteja alerta: «A grande marcha da destruição mental continuará. Tudo será negado. Tudo se tornará um credo. É uma posição razoável negar as pedras da rua – será um dogma religioso afirmá-las. É uma tese racional que tudo não passa de um sonho – será uma sanidade mística dizer que estamos acordados». Nos dias em que tudo se põe em questão, em que tudo é relativo, em que tudo depende do contexto e tudo se resume a um ponto de vista, é tempo de voltar atrás. É claro que nos chamarão “retrógradas” e “conservadores”, mas, em boa verdade, «se estamos no caminho errado, progresso significa dar a volta e voltar para o caminho certo; e, nesse caso, o homem que voltar primeiro é o mais progressista de todos» (cf. C. S. Lewis, Mere Christianity).

Nos tempos em que a coerência era um mínimo, defendeu-se o utilitarismo para poder chegar a horas às coisas inúteis e nelas repousar; hoje, porém, na idade do relógio, todos queremos ser úteis pela simples ideia de utilidade e, como ninguém pensa para que serve tanto utilitarismo, vivemos vidas inúteis.

Dito tudo isto, não venho falar de subjectivismos, de moral ou de filosofia. O leitor teria mais que fazer e eu, para ser honesto, já escrevo sobre filosofia o quanto baste para a universidade. Mas, para o que quero aqui dizer, é inevitável partir deste pressuposto: o que está certo não está errado; o que é importante não é supérfluo. E é deste “importante que não é supérfluo” que venho falar. Este mundo enlouquecido já nos convenceu a virar a pirâmide de prioridades de pernas para o ar. Na era da razoabilidade, o meio estava entre o início e o fim, e assim o emprego, para além de fonte de realização, era um meio para sustentar a família; hoje, porém, nos dias do racionalismo, o emprego, se servir para alguma coisa, serve para ganhar o dinheiro com que tentamos comprar a nossa suposta independência. Nos tempos em que a coerência era um mínimo, defendeu-se o utilitarismo para poder chegar a horas às coisas inúteis e nelas repousar; hoje, porém, na idade do relógio, todos queremos ser úteis pela simples ideia de utilidade e, como ninguém pensa para que serve tanto utilitarismo, vivemos vidas inúteis.

É uma verdade objectiva – a par com “o que é verdadeiro não é falso” e “o que é essencial não é supérfluo” – que “o que é ‘bom para’ é bom para atingir o que é ‘bom em si’”, ou, por outras palavras, “a utilidade do que é útil está naquilo que é inútil”. «Acender-se-ão fogos para testemunhar que dois e dois faz quatro. Serão desembainhadas espadas para provar que as folhas são verdes no Verão. Chegaremos ao ponto de defender, não apenas as incríveis virtudes e sanidades da vida humana, mas algo ainda mais incrível – este gigante e impossível universo que nos encara de frente». Que fogos, querido leitor, acenderá? E por que factos está disposto a desembainhar a espada? O mundo convenceu-nos de que devemos organizar a nossa vida em função do útil; mas o útil, bem vistas as coisas, serve para quê? Se A é útil para B e B para C, quando acabaremos este processo? Onde está a rocha firme da utilidade? Pois bem, se mais ninguém o quiser dizer, digo-o eu. O útil serve para o inútil. O inútil é a rocha firme de toda a utilidade. E, daí se segue, o inútil é o mais importante.

Quantas e quantas horas de maquinação útil tem o leitor feito; e quanto tempo desperdiçou inutilmente a ouvir o cantar dos pássaros? Quantos livros e artigos permeados de informações tem lido; e quantos poemas? Quantas horas de telejornal; e há quanto tempo não vê uma peça de teatro? Quantas ordens e indicações ouviu hoje; e quanto tempo desperdiçou em boa música? Quantas palavras técnicas pronunciou esta semana; e quantos “amo-te” saíram da sua boca? Mas, se o inútil – que não é “bom para”, mas bom em si – é o mais importante, porque organizamos a nossa vida em função da utilidade? Não me interprete mal: o útil é útil… enquanto serve para o inútil. Alguém me responda, então, alguém que me responda: se o mais importante da vida é um abraço, porque ordenamos as nossas vidas ao redor de secretárias?

Quantas ordens e indicações ouviu hoje; e quanto tempo desperdiçou em boa música? Quantas palavras técnicas pronunciou esta semana; e quantos “amo-te” saíram da sua boca?

Não nos deixemos enganar nem voltar às nossas vidas! Este mundo triste e enlouquecido, mal tiremos os olhos deste texto – ou talvez antes –, dir-nos-á para encolhermos os ombros, chamar-nos-á de volta para a infindável corrente de meios sem fins. Querido leitor, não vá na cantiga: pegue num poema, abra a janela e ouça os pássaros, vá brincar com os seus filhos, passe um belo dia na montanha, tenha uma conversa sem utilidade e contemple um belo quadro. Houve – e há – tempos para negar o ócio e dedicarmo-nos ao neg-ócio; mas é chegado o dia de negar o negócio. Se o mundo nos chama para as suas máquinas e cadeias de produção, caro leitor, responda-lhe à letra – “para o diabo”! Para o diabo com meios sem fins! Para o diabo com utilidade sem inutilidade! Para o diabo com fazer do supérfluo essencial! Para o diabo com a obsessão pela eficiência! Para o diabo com a técnica que mata a arte! Para o diabo com o horário que sufoca o tempo! Para o diabo com o relógio que faz tique-taque!

Oh! «Lutaremos por prodígios visíveis como se fossem invisíveis»! Neste mundo enlouquecido, teremos de ser mais loucos ainda! Num mundo que está morto, teremos de morrer de novo! Num mundo subjectivista, teremos de sair em busca do sujeito! Num mundo utilitarista, teremos de redescobrir a verdadeira utilidade! Num mundo vazio, teremos de nos esvaziar; e, num mundo perdido, teremos de nos perder! «Olharemos a relva impossível, e o firmamento, com uma estranha coragem»! Gritaremos que o meio não é o fim – e que o fim é que é o centro! Bradaremos que o importante não é supérfluo – e que o supérfluo não é o essencial! E, se, como Sísifo, tivermos de retomar este peso todos os dias, até à eternidade o façamos: dia após dia (cf. Lc 9, 23).

Por isso, caro leitor, antes que seja tarde demais e que o evidente lhe pareça uma mera perspectiva, o melhor é mesmo fazer do óbvio um dogma. O que é verdadeiro é verdadeiro; o que é verdadeiro não é falso. O importante é central; o supérfluo não é essencial. A utilidade do que é útil está para o que é inútil. A tudo o resto, e a quem isto negar, digamos convictos: para o diabo! Loucos nos chamarão; e loucos que nos chamem – o discípulo não é mais do que o Mestre (cf Jo 15, 20). «Seremos daqueles que viram e, ainda assim, acreditaram».

Nota: todas as citações não referenciadas referem-se ao parágrafo final de Hereges de G. K. Chesterton.

Ao autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.

Fotografia de Igor Miske – Unsplash

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.