Prostituição: a falácia da dignidade

Regulamentar a prostituição e legalizar o lenocínio não é a solução para proteger as mulheres e raparigas menores vulneráveis da violência e da exploração.

A 20 de janeiro de 2020, deu entrada na Assembleia da República a Petição “Legalização da Prostituição em Portugal e/ou Despenalização de Lenocínio, desde que este não seja por coação”. Já foi objeto de um relatório final elaborado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e enviada ao Presidente da Assembleia da República a 31 de março de 2021 para apreciação em Plenário.

Em Portugal já vigorou um sistema que regulamentava a prostituição. Teve na sua origem um surto de sífilis em 1853 entre militares e sujeitava as mulheres a inspeções periódicas, a matricularem-se e a apresentarem livrete. Em 1962 a atividade tornou-se proibida e desde 1983 a prostituição deixou de ser crime. Comete um crime de acordo com o artigo 169º do Código Penal, quem pratica o proxenetismo ou lenocínio, isto é, “Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição”.

Ao longo de dezasseis anos o Tribunal Constitucional (TC), em vários Acórdãos, foi-se pronunciando afirmativamente pela criminalização do lenocínio. Em março de 2020, pela primeira vez, o TC entende que não é necessário ir tão longe e criminalizar o lenocínio quando a pessoa que se prostitui está a exercer o seu direito de liberdade sexual. Mais recentemente, o Acórdão nº 72/2021, revogando o anterior, pronuncia-se novamente no sentido de criminalizar quem profissionalmente favorecer ou facilitar a prostituição de adultos que agem de livre vontade. Refere que a questão está muito para além da liberdade individual e da liberdade sexual e intimamente relacionada com movimentos nacional e internacionalmente organizados, cujo resultado corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que escapa a qualquer controlo e que se perpetua enquanto se mantiver a “utilidade comercial”. O risco da exploração da pessoa que se prostitui é suficientemente forte para justificar a intervenção penal, conclui.

Refere que a questão está muito para além da liberdade individual e da liberdade sexual e intimamente relacionada com movimentos nacional e internacionalmente organizados, cujo resultado corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que escapa a qualquer controlo e que se perpetua enquanto se mantiver a “utilidade comercial”.

Na Europa não há um modelo comum que regule a prostituição. O maior grupo de países é o dos abolicionistas, que encaram a prostituição como uma violência de género e quem se prostitui como uma vítima. Não proíbem ninguém de vender sexo, mas também não facilitam a atividade, criminalizando quem facilita o negócio. Estão neste grupo, entre outros, a Bélgica, a França, Portugal, Itália e Espanha. Dentro deste grupo, alguns países (França, Bélgica, Suécia) chegam a punir os clientes. Um outro grupo é constituído pelos países que regulam o trabalho sexual – a Áustria, a Alemanha e os Países Baixos. O terceiro inclui a Lituânia, a Roménia e Croácia, em que se proíbe o trabalho sexual mediante sanções criminais e/ou administrativas que se aplicam a quem vende e a quem compra sexo.

Dados do Terceiro Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho de 20-10-2020, mostram-nos que a exploração sexual continua a ser a finalidade predominante do tráfico de seres humanos na UE. Quase três quartos de todas as vítimas são do sexo feminino (mulheres e raparigas), sendo traficadas maioritariamente para fins de exploração sexual.

A prostituição é fundamentalmente um sistema organizado para o lucro, uma indústria que gera milhões e em que quem beneficia é o proxeneta e quem está acima dele. Os lucros dos proxenetas ascendem a um montante mais elevado do que a totalidade das despesas militares mundiais, cita um estudo do Parlamento Europeu. Em torno da prostituição e do lenocínio floresce a criminalidade organizada, o que significa que num quadro de legalização, quem mais beneficia é o proxeneta que se transforma em “homem de negócios”.

A prostituição está indissociavelmente ligada ao agravamento da pobreza e exclusão social, à vulnerabilidade dos mais pobres, às dificuldades do acesso à educação e ao trabalho, a um salário mínimo insuficiente e apoios sociais indignos, que são a causa da falta de alternativas de subsistência para além da delinquência e da prostituição. A estas juntam-se a falha na educação sexual e para a cidadania, que geram comportamentos de violência e intolerância, a falta de condições no acolhimento ao imigrante, o aproveitamento das situações de vulnerabilidade de quem se explora e de quem compra sexo, o desrespeito pelo outro que é considerado um ser inferior, descartável.

A prostituição está indissociavelmente ligada ao agravamento da pobreza e exclusão social, à vulnerabilidade dos mais pobres, às dificuldades do acesso à educação e ao trabalho, a um salário mínimo insuficiente e apoios sociais indignos, que são a causa da falta de alternativas de subsistência para além da delinquência e da prostituição.

É também um problema de saúde, uma vez que tem impactos negativos na saúde das pessoas que se prostituem, que apresentam uma maior probabilidade de sofrer de traumas de saúde sexual, física e mental, de toxicodependência, alcoolismo e perda de autoestima, bem como de uma taxa de mortalidade superior à da média da população em geral.

Por outro lado, o conceito de prostituição não se concilia com o conceito de trabalho digno introduzido pela Organização Internacional do Trabalho. Nem tudo o que se troca por dinheiro é trabalho. Digno é um trabalho que permite a uma pessoa usufruir de uma boa qualidade de vida e que pressupõe os direitos à liberdade de expressar as suas preocupações, a um salário justo, condições de trabalho, à proteção social e diálogo social, à igualdade de oportunidades, à saúde.

O que está em causa não é só a liberdade de dispor do próprio corpo e/ou a regulamentação da atividade. É a dignidade da pessoa humana. E sendo esta indisponível, a incriminação do proxenetismo afigura-se como legítima, sendo essa indisponibilidade que limita a relevância do consentimento do ofendido.

Não nos iludamos: a mulher é o elo mais fraco num sistema intrinsecamente violento, discriminatório e profundamente desumano. A prostituição é um fenómeno de desigualdade de género. É uma forma de escravatura incompatível com a dignidade do ser humano e com os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. Faz sentido que em nome da liberdade sexual se abra a porta a “um risco elevado e não aceitável de exploração de situações de carência e desproteção social, colocando em perigo a autonomia e liberdade da pessoa que se prostitui”? (expressão usada num dos referidos Acórdãos).

Regulamentar a prostituição e legalizar o lenocínio não é a solução para proteger as mulheres e raparigas menores vulneráveis da violência e da exploração. A solução passa por cumprir a Constituição da República Portuguesa, os tratados e convenções ratificados por Portugal e o Plano Nacional de Combate ao Tráfico de Seres Humanos. É fundamental criar um Plano Nacional de Combate à Exploração na Prostituição, que assuma a prostituição como uma forma de violência contra as mulheres, garantindo, nomeadamente, o acesso imediato das pessoas prostituídas a apoios que lhes permitam a reinserção social e profissional, a elevação da sua escolarização e o acesso dos seus filhos aos equipamentos sociais, a par da criação de uma rede pública de centros de apoio e abrigo que prestem assistência psicológica, médica, social e jurídica às vítimas de tráfico e prostituição. É necessário adotar medidas que promovam mudanças de comportamento socioculturais das mulheres e dos homens para erradicar preconceitos assentes na ideia da inferioridade das mulheres ou nos papeis estereotipados das mulheres e dos homens.

Termino com a “Geni e o Zepelim” do Chico Buarque, composta em 1978, mas atual na sua chamada de atenção para a exclusão social, o uso do corpo da mulher como objeto e para a sua instrumentalização perante a hipocrisia da sociedade.

 

Foto de Johannes Krupinski – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.