Neste tempo de ecrãs e imagens escorregadias, é talvez apropriado que o maior dramaturgo português seja também o mais secreto. Falo de Vicente Sanches, autor de peças como A Birra do Morto, Grupo de Vanguarda e Teatro de Aforismos. São apenas três exemplos de uma obra longa e sempre espantosa, sempre fascinante, sempre provocatória. A Gulbenkian publicou, em dois volumes e com uma introdução de Maria Filomena Molder, as peças do autor escritas até 2013 — podemos abrir um desses volumes em qualquer página que seremos sobressaltados por alguma questão essencial. Deus ou Nada? O homem vem do macaco ou vai para macaco? A morte é inevitável, a vida é um milagre? Como há possessos do Inferno, poderá também haver possessos do Céu? A loucura pode mais que a sensatez? A doença pode ser bênção?
Há peças mais convencionais, com quarta parede, intriga e personagens (O Passado e o Presente ou Um Homem de Sorte, por exemplo); há outras com ideias intrigantes em vez de intriga, atores-personagens que quebram a quarta parede para conversarem com os espetadores e figuras elevadas a porta-vozes do público (por exemplo, Grupo de Vanguarda e Liturgia Polémica); e há ainda outras pertencentes ao chamado Teatro de Aforismos, “género literário” inventado pelo autor que leva ao palco momentos — ao mesmo tempo, menos e mais do que cenas — onde se busca dar uma forma de carne e osso a interrogações, iluminações, hipóteses (por exemplo, Teatro de Aforismos, Aforismos da Casa de Sêr e Quinto Império ou A Musa da Casa de Sêr). Digamos que são textos concretos de teatro abstrato. Digamos que são um mecanismo genial de pôr frases nuas sob os projetores. Digamos que são encenações da alma.
E são também um farol para os palcos de amanhã. Aliás, o autor deu disso conta numa nota de 1997: para as “redes eletrónicas futuras”, escreveu, é adequado, pelo seu “carácter não-sequencial”, o Teatro de Aforismos. Hoje podemos confirmar a pontaria. Sim, esqueçam os “espetáculos multimedia”, as brincadeiras tecnológicas “em tempo real” ou as “performances interativas” — o teatro para a idade da internet começa aqui. O que a escrita de Vicente Sanches nos vem dizer, além de tudo o mais e em sentido contrário às correntes dominantes, é que os dias “wireless” em que vivemos são uma oportunidade para pôr o espírito em cena.
Hoje podemos confirmar a pontaria. Sim, esqueçam os “espetáculos multimedia”, as brincadeiras tecnológicas “em tempo real” ou as “performances interativas” — o teatro para a idade da internet começa aqui. O que a escrita de Vicente Sanches nos vem dizer, além de tudo o mais e em sentido contrário às correntes dominantes, é que os dias “wireless” em que vivemos são uma oportunidade para pôr o espírito em cena.
Mas a inteligência profética desta escrita não nos deve fazer esquecer o seu humor, a desconcertante simplicidade com que desarma o leitor-espetador e o vai puxando, como se não fosse nada, para os assuntos mais difíceis e mais importantes. Há a graça divina e há a graça de uma piada, e em Vicente Sanches as duas andam lado a lado. Leia-se, por exemplo, Van Gogh: “— Posso pegar-me um bocadinho ao colo?, perguntou Van Gogh à sua Loucura./ — Podes, respondeu ela./ Então ele tomou a criança nos braços, com muito cuidado: pois a criança estava a dormir, e ele não queria acordá-la.” Ou Sétimos Aforismos: “Li ontem uma bela poesia de Natal; e gostei de saber — e saborear — que o autor era ateu./ Se fosse crente o poeta, ao fazer aqueles versos não fazia mais do que uma espécie de obrigação…/ Mas, sendo ateu, foi devoção!”
Esta é uma escrita que não se furta à luta e enfrenta as dificuldades de cara aberta. “Não há teatro sem conflito”, diz-se, aliás, no número 6 de Teatro de Aforismos. Mais: é uma escrita que se alimenta das suas próprias dificuldades. Que carrega nos contrastes e contradições para conseguir vitórias livres de ambiguidade (mas, “graças a Deus”, apetece dizer, não livres de ironia!). Uma escrita que acredita realmente no poder do teatro, esse espaço real e imaginário onde só há presente — que é não só o tempo “mais aforístico” mas também o tempo “do próprio Deus” (17 Aforismos). Vicente Sanches nunca assistiu a uma representação das suas peças. Estará aí um princípio de explicação para a maravilha deste teatro que consegue conjugar o impossível no presente?
Esta é uma escrita que não se furta à luta e enfrenta as dificuldades de cara aberta. “Não há teatro sem conflito”, diz-se, aliás, no número 6 de Teatro de Aforismos. Mais: é uma escrita que se alimenta das suas próprias dificuldades.
Num tempo em que o “paradigma dominante” (para citar uma t-shirt que um amigo me trouxe há mil anos da Califórnia, estado-símbolo das “novas tecnologias”) diz que o corpo tem de ser frio e sofisticado, modernaço e cínico e que a alma só pode ser sisuda e antiquada, reacionária e ingénua, o teatro de Vicente Sanches desconcerta-nos com a frescura da sua “presença de espírito”. Sim, este é um teatro que não acredita em não-milagres: aqui “tudo, mas tudo, — é sobrenatural” (35 Aforismos). Na discussão entre clássico e moderno no teatro — ou, como agora se diz, entre dramáticos e pós-dramáticos, ficcionais e documentais, monásticos e mediáticos —, Vicente Sanches bate todos. Nesta época de pose, palha e cinismo, é talvez apropriado que o mais católico dos dramaturgos se revele o mais radical. Os exemplos davam para um calhamaço, mas aqui ficam dois ou três: em Teatro de Aforismos, diz-se que a encenação do texto deve dar espaço a incidentes resultantes da discussão das ideias da peça e a comentários improvisados; em O Mágico, diz-se que o tumulto do palco deve passar para o exterior do teatro, para a rua, até deixar de ser um mero tumulto para se tornar um princípio de revolução; e Liturgia Polémica é uma peça de teatro que pretende pôr os espetadores a rezar. Recentemente, o autor recusou autorizar a encenação de algumas peças suas por confiar na criação de uma ordem religiosa para interpretar autenticamente toda a sua obra. Enquanto tal não acontece, resta-nos ler estes aforismos com espírito aberto — e interpretá-los fora dos palcos, dentro da vida, sem bilhetes nem guarda-roupa, como é que se diz?, “de graça”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.