Porque não, não é resposta

Na verdade, a declaração pretende levar até ao fim uma das mais importantes intuições do cristianismo: a diferença entre ato e pessoa. A ideia segundo a qual se “odeia o pecado, mas se ama o pecador”.

Quando o Batman pretende fugir de uma situação de perigo, rodopia a capa, lança fumo para o ar e explode pequenas bombas para encandear os olhos de quem o persegue. A estratégia é universal, e frequentemente usada na Igreja quando um debate se prepara para começar. Dá-se meia volta. Arremessa-se uma frase bíblica. Ignora-se a questão. Descontextualiza-se. Simplifica-se. Por fim, deixa-se tudo como está.

No final de 2023, o Dicastério para a Doutrina da Fé publicou a declaração Fiducia Supplicans e a metodologia não demorou a saltar a vista. Diz-se dela o que ela não diz, para enfurecer os fãs. Diz-se que ela não diz o que diz, para a tornar uma mão cheia de nada. Reduz-se a conversa ao vão de escada. Esquece-se a oportunidade de debate, ou por falta de vontade, ou por falta de comparência, ou por falta de material. Mas, se a culpa de quem acha que Os Maias são um manual de decoração não é do Eça de Queirós, mas do leitor, insensível e impreparado, a responsabilidade de quem falha sempre o alvo na leitura, não será certamente nem do Papa nem do Dicastério para a Doutrina da Fé. Aliás, a fulanização da tomada de decisão, como se este não fosse um pronunciamento da Igreja, é já intencional.

Mas então o que diz a declaração? Em primeiro lugar, que o seu objetivo é “ampliar e enriquecer a compreensão clássica das bênçãos”. Nisto corresponde, desde logo, a um dos gatilhos fundamentais da teologia. Saber que a fidelidade à tradição exige mudança e que dentro do mecanismo de compreensão da fé, gradual e progressivo, “ampliar e enriquecer” as concretizações do Evangelho é fundamental, porque, por um lado “não existe uma fé quimicamente pura”, e, por outro, porque nenhuma prática extingue e exaure a totalidade da Revelação.

Neste sentido, o que aqui se propõe discutir é muito mais do que uma questão sobre os casais de pessoas do mesmo sexo. A questão é saber se é possível um modo de expressar que todas “as pessoas permanecem abençoadas, não obstante dos seus graves erros”; se, de alguma maneira, “não pretendendo a legitimidade do seu próprio status”, que “todo o que há de verdadeiro, bom e humanamente válido nas suas vidas e relações, seja investido, santificado e elevado pela presença do Espírito Santo”. Dizer-se, como vastamente foi escrito, que a Igreja não o pode fazer, como não pode, por exemplo, abençoar a seringa de um toxicodependente, é demagogia e falta de seriedade. Porque se quisermos seguir o exemplo, o que está em causa não é abençoar qualquer seringa, mas saber se, ainda assim, o toxicodependente não continuaria a ser amado infinitamente por Deus, e se não haveria uma maneira de o mostrar eclesialmente. Isto é o mesmo que perguntar, usando uma metáfora bíblica, se, apesar das palavras objetivamente erradas, Deus não continuaria a bendizer, a cuidar e a aconchegar o mau ladrão? Na verdade, a declaração pretende levar até ao fim uma das mais importantes intuições do cristianismo: a diferença entre ato e pessoa. A ideia segundo a qual se “odeia o pecado, mas se ama o pecador”.

Na verdade, a declaração pretende levar até ao fim uma das mais importantes intuições do cristianismo: a diferença entre ato e pessoa. A ideia segundo a qual se “odeia o pecado, mas se ama o pecador”.

Entre aquilo que o documento diz e aquilo que não diz, é difícil ainda entender a tentativa de o classificar como dúbio, impreciso e ambíguo. A declaração afirma, categoricamente, e por diversas vezes, que a possibilidade de bendizer os casais do mesmo sexo “não significa convalidar oficialmente o seu status nem alterar, de algum modo, o ensinamento perene da Igreja sobre o Matrimónio”, e indica, sem margem para segundas interpretações, que “esta bênção nunca se deve realizar ao mesmo tempo que outros ritos civis de união, nem tão pouco em ligação com eles. Nem sequer com as vestes, gestos e palavras próprias do matrimónio”. O texto chega mesmo a referir que, para impedir mal-entendidos, “não se deve promover nem prever um ritual para as bênçãos”.

Neste debate, que muitas vezes se vê empobrecido e transformado numa troca de galhardetes, o que é dúbio, impreciso e ambíguo parece ser o recurso à ideia de “escândalo”, como critério pastoral, pelo menos no sentido em que ele é empregue. Ou seja, a amplitude que a Igreja propõe para a expressão das bênçãos é tida como escandalosa porque “ofende o pudor”, “induz em erro”, “leva ao mau exemplo”. É escândalo na mesma medida que se grita: “o que é que se vai dizer por aí, quando se souber?”.

Ora, não é esse o sentido evangélico deste critério. Escândalo é, antes de mais, existir em sintonia com Cristo, ainda que contra si mesmo. E esta declaração é uma oportunidade para dar corpo a esta opção fundamental. Geopoliticamente, ao contrário do que seria expectável no virar do século, as tendências contra a globalização têm crescido e são cada vez mais os países que têm vindo a revogar leis que tinham consagrado o que há poucos anos era descrito como “direitos fundamentais”.

Neste âmbito, por exemplo, alguns países têm revertido os diversos pacotes legislativos acerca do casamento de pessoas do mesmo sexo, redundando na desproteção social desta minoria. É precisamente aqui que o documento parece ser tão prudente como evangelicamente escandaloso. Num mundo onde, simultaneamente, existem países onde a homossexualidade é criminalizada, e outros onde se discute a implementação de casas de banho unissexo nas escolas, e numa Igreja onde, como expressão da sua catolicidade, se discute, em alguns contextos, a inclusão de minorias sexuais, e, noutros, o mesmo assunto é visto como anátema, a opção parece ser o caminho do meio: manifestar a bênção de Deus sobre todas as pessoas, mas recuperando o histórico primitivo da luta pelos direitos LGBT onde existia a rejeição do matrimónio em modelo.

No entanto, a questão face à leitura teológica e cristã da homossexualidade não pode deixar de enfrentar cinco questões fundamentais:

(1)  Um argumento conhecido da postura clássica acerca da homossexualidade é a afirmação segundo a qual esta não corresponde à lei natural, onde só é possível a união entre homem e mulher. Mas dado que os seres humanos não têm acesso à natureza por abstração, mas só são capazes de a experimentar enquanto racionalmente interpretada e socialmente construída, a atividade sexual natural não dependerá da orientação sexual? Ou seja, atos homossexuais são naturais para as pessoas com orientação homossexual, e o mesmo acontece com pessoas heterossexuais. Isto sem que natureza se transforme diretamente em ética, porque homossexualidade e heterossexualidade serão éticas se: livres, justas e amorosas;

Não é de somenos perguntar, igualmente, que fundamento é possível invocar, neste momento, para defender que a homossexualidade não possibilita uma “verdadeira complementaridade afetiva e sexual”.

(2)   Importa, também, aprofundar o sentido da “abertura à transmissão da vida”. É importante, neste campo, perguntar se, considerando que esta não é unicamente biológica, mas também relacional – a doutrina da Igreja sempre defendeu que o matrimónio tem um duplo fim: a felicidade dos cônjuges e a abertura à vida – se o conceito de fecundidade conjugal não terá de ser reinterpretado para nele entender um significado mais profundo: abertura à vida significa compreensão-ação da vida como dom dentro do contexto concreto de cada ser humano;

(3)   Não é de somenos perguntar, igualmente, que fundamento é possível invocar, neste momento, para defender que a homossexualidade não possibilita uma “verdadeira complementaridade afetiva e sexual”. A ideia segundo a qual a homossexualidade é intrinsecamente desordenada, criadora de relações instáveis, voyeurísticas, agressivas e passionais, por exemplo, não tem qualquer base científica. Como demonstrou, por exemplo, Lawrence Kurdek é possível apresentar dados que indicam que os membros da comunidade LGBT tendem a uma distribuição mais equitativa do trabalho doméstico, tendo, até, mais habilidades na resolução de conflitos;

(4)   Outra questão remete-nos, de novo, para a ideia de desordem ética natural da homossexualidade. Ora, o “julgamento” ético, como o Cristianismo o vê, tem como objeto os atos que são livres, aqueles que reclamam responsabilidade pessoal. Neste sentido, aquilo que, como é o caso da orientação sexual, não é uma escolha, não é nem moral ou imoral, “é simplesmente”. Pelo que pode ser uma inversão da abordagem cristã da ética persistir nesta categorização;

(5)   Algo que é usado para criticar o documento do Dicastério para a Doutrina da Fé é a ideia de que ele recorre excessivamente ao magistério do Papa Francisco e não está “ancorado na tradição da Igreja e na Sagrada Escritura”. Se por um lado, esta afirmação é falsa, na medida em que a Fiducia Supplicans tem todo um capítulo dedicado a um percurso bíblico sobre a temática da bênção, por outro, as leituras fixistas e a-históricas, que procuram descobrir na Bíblia uma condenação da homossexualidade, incorrem em má-fé. Os textos bíblicos são historicamente situados. Não têm, por exemplo, referências à inteligência artificial, e, no entanto, a Igreja não deixa de ter algo a dizer sobre o assunto. Como, por exemplo, têm outras acerca de questões de saúde e nutrição, que, embora estejam na Bíblia, nos recusaríamos a restaurar exatamente porque tiveram o seu contexto. O mesmo equilíbrio é necessário quando se fala de questões ligadas à sexualidade sob pena de usarmos a Bíblia do mesmo modo que os fundamentalistas religiosos (que a vêm como manual para o seu nacionalismo radical). Mal de nós se a frase “criou-os homem e mulher”, fosse uma frase sobre a orientação sexual;

Ainda assim, contra a difusão de leituras deturpadas do documento pontifício, importa sempre reafirmar que não é só a “ideologia de género” que tem ideologia dentro de si. Se Ricoeur tem razão, e a ideologia está ligada à necessidade de um grupo social conferir uma imagem de si mesmo, de se representar, justificar e defender, a pressa em caracterizar todo o questionamento da reflexão católica sobre a homossexualidade como porta aberta ao wokismo, não deixa, também ela, de estar carregada de deturpações e enviesamentos. Mas, talvez o critério decisivo da Igreja do futuro seja a sua capacidade de, num mundo muito tribalizado, difundir a sua capacidade de bendizer.

Neste sentido, mesmo com o processo sinodal em curso, sinto que a qualidade do ar dentro da Igreja tem diminuído bastante.

Por fim, gostava de deixar uma nota que, num certo sentido, é, para mim, a mais importante. Sempre que alguém se lança a escrever um texto sobre um tema destes parece que se vê obrigado a fazê-lo com pés de barro. Configura-se permanentemente mais fácil escrever em direção contrária, mesmo que em oposição clara ao pronunciamento da Santa Sé. Esse é sempre o fiel, o ordeiro, o guardião. O outro o insidioso, o pagão, o ligeiro e o leviano. Aliás, interiormente, sinto que tocar em alguns assuntos é sempre correr o risco de (como referiu há uns dias um amigo meu), “me meter em cheque”. Há sempre um amargo de boca que fica. A sensação de que se corre o perigo de ser “conotado”. Inclusive, a possibilidade de se tornar “um alvo a abater”. Neste sentido, mesmo com o processo sinodal em curso, sinto que a qualidade do ar dentro da Igreja tem diminuído bastante. Por razões do acaso, contacto diariamente com bibliotecas pessoais legadas a uma instituição da minha Diocese, ela própria com uma biblioteca “própria”. E se há algo que me espanta sempre que olho para as estantes é a abertura que aqueles livros representam. Um exemplo disso é a quantidade de livros sobre marxismo que esta mega-biblioteca tem, sem que nenhum deles seja claramente publicitário ou enviesado acerca do tema. Imagino a ousadia – ou não – que devia ter sido, um padre no início do séc. XX ter mais do que uma prateleira de bons livros sobre Marx, e não simplesmente livros com os quais ele concordava, nem só livros que diziam o que ele gostaria de ouvir. Mas imagino qual terá sido a intuição: se a teologia, como está pensada, não consegue responder às questões colocadas por Marx – e, para isso, é preciso saber bem o que Marx diz, – então é altura de o pensamento católico procurar um estilo mais evangélico, porque não, não é resposta. O mesmo diria acerca das questões que coloquei.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.