O Verão eleitoral de 2019 fica marcado por uma polémica em que de novo o Bloco de Esquerda surgiu como o partido da “preocupação com o bem-estar dos cidadãos”, moralmente superior, respeitoso do “tratamento humano das diferenças”, pedagogicamente expresso através do tom monocórdico de Mariana Mortágua, ajudado por reacções embaraçosas dos partidos portugueses à direita.
Falo do despacho n.º 7247/2019 que estabelece, citando o seu Artigo 1.º, “as medidas administrativas que as escolas devem adotar para efeitos da implementação do previsto no n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa”. Em particular, o ponto 3 do Artigo 5.º foi alvo de grande contestação: “As escolas devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade.”
Não sou jurista e por isso não percebo as razões que levam à redacção de um despacho quando já existe uma lei para ser cumprida, mas imagino que os juristas dominem estas necessidades legais. Acontece que o despacho que prevê que cada aluno possa escolher a casa de banho de acordo com o género com que se identifica, não sendo coincidente com o sexo com que nasceu, poderia ser substituído por uma conversa entre os pais, os professores e as direcções das escolas, como de resto referiu Marques Mendes no seu comentário ao domingo. Acontece que depois os partidos não teriam maneira de preencher o Verão de campanha eleitoral. Como é que a esquerda surgia como a defensora dos direitos dos mais vulneráveis e a direita como o velho a quem tudo faz confusão
O meu cepticismo dita que o timing da publicação do despacho tenha sido escolhido para obter a reacção previsível dos partidos à direita. O que é certo é que nem ao CDS nem ao PSD passou pela cabeça convidar a comunicação social a visitar uma escola para as pessoas ficarem a perceber a falta de condições das casas de banho das escolas portuguesas. Nem precisavam de sair de Lisboa.
Que Estado é este que continua a tolerar o insuportável e elabora despachos por politiquice?
A honrosa excepção ao coro de catastrofistas que alertou para “o fim da família”, tudo a propósito de miúdos transgénero poderem usar o balneário do género com que se identificam, foi Filipa Roseta, do PSD, que bem-educada e tímida explicou a Mariana Mortágua o que estava em causa. Há miúdos que não vão à casa de banho na escola porque estão em condições miseráveis. Faltou veemência e falta de piedade na defesa do ponto de vista. Faltou sobretudo convidar os jornalistas a irem ver o que não funciona para nenhuma criança.
Se este problema sério não interessa aos políticos que se descontrolaram em vários artigos com a ideia de “meninos serem meninas”, então agradeço que nos poupem à maçada de se candidatarem. Quanto ao “fim da família”, gostaria de alertar os mais intensos para questões que, essas sim, determinam que a família tenha os dias contados: violência doméstica, abuso sexual de crianças, negligência em relação aos idosos. Que Estado é este que continua a tolerar o insuportável e elabora despachos por politiquice? E que direita é esta que reage com ignorância, indiferença e tanta falta de habilidade política? Mas que cruz carrega o eleitorado de centro-direita não reaccionário para o qual as “questões fracturantes” se resumem ao respeito pelo próximo!
Não imagino o que será a vida de uma miúda ou de um miúdo transgénero, como será o seu quotidiano familiar, no caso de ter nascido numa família sem amor nem carinho; como será o seu dia-a-dia na escola, a ter de enfrentar a crueldade alheia, a incompreensão, a solidão. Já para não falar do terrivelmente doloroso que será nascer num corpo “errado”, como uma alma que se perde no caminho e acorda num destino inesperado. Não acredito em “erros” desta natureza, mas não fecho os olhos ao sofrimento. Sejamos sensíveis, cada vez mais, à complexidade humana e estejamos abertos a compreender em vez de estarmos sempre a julgar o que não nos aconteceu.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.