Escrevo este texto em defesa da polarização e proponho uma nova bête noire para antagonizarmos em alternativa, todos juntos: o tribalismo.
Começo pela definição: por polarização entendo, neste texto, o afastamento progressivo das conceções políticas, sociais e morais adotadas por diferentes indivíduos. A primeira pergunta é saber se isto é mau, por si. Não me parece que seja. Acreditar e pensar de forma diferente não impede a convivência, o respeito, a amizade, até o amor. A família é berço e casa da discórdia. E, ao mesmo tempo, é lugar da maior proximidade e confiança.
Mas então porque é que desagrada tanto a polarização? A meu ver, porque a confundimos com outro fenómeno: o tribalismo, isto é, a mentalidade que divide a sociedade entre «os meus» e «os outros». Que traça linhas firmes entre os bons e os maus, entre aliados e inimigos. Que impossibilita uma ideia de “nós”, que antagoniza, que separa, que rompe os laços.
Se a polarização for sinónimo de tribalismo, então é bom que a recusemos. E, de facto, é assim que muitas vezes entendemos a relação entre estes dois fenómenos, considerando o tribalismo como um resultado natural e inevitável da polarização, como uma espécie de polarização nível 100. O argumento seria que, a partir de um certo ponto, tornamo-nos tão polarizados, que nos tribalizamos.
Acreditar e pensar de forma diferente não impede a convivência, o respeito, a amizade, até o amor. A família é berço e casa da discórdia. E, ao mesmo tempo, é lugar da maior proximidade e confiança.
É frequente ser este o desenrolar natural das coisas. Mas não acho que sejam assim tão próximos, e nem sequer que se impliquem mutuamente: há pessoas com posturas tribalizadas sem serem polarizadas – não é preciso ter convicções para escolher inimigos políticos e sociais – e há pessoas que discordam profundamente entre si, sem terem convertido as suas mentes à leitura dicotómica amigo-inimigo. Pessoas que se respeitam, que se valorizam mutuamente, que são amigas. O que demonstra como, ainda que facilmente confundíveis, são geneticamente diferentes: num, discutimos a distância entre nós e o próximo; noutro, discute-se a essência da nossa relação comunitária.
Significa isto que a diferença entre a polarização e o tribalismo não é quantitativa, mas é qualitativa. A polarização diz-nos onde estamos; a tribalização diz-nos como estamos. Na polarização, podemos estar longe, mas pisamos o mesmo chão. Na tribalização, encontramo-nos em órbitas diferentes. Na polarização, há um “nós” abrangente, que se define internamente; no tribalismo o “nós” é exclusivo, definindo-se como negação dos “outros”.
É certo que isto hoje pode parecer uma raridade, porque os polarizados/não-tribais passaram de moda (até os não-tribais andam com dificuldades). O que está a dar é ser tribal, polarizado-ou-não. Mesmo assim, estou convencido que temos exemplos suficientes no nosso tempo de que se pode ser um sem outro. E por isso, a questão central que se coloca é a saber como queremos ser, enquanto indivíduos e sociedade. A minha proposta é que devemos combater o tribalismo, mas explorar a polarização. Tento explicar porquê.
Bom, julgo que não preciso de me estender na explicação sobre porque devemos combater o tribalismo. É destrutivo da vida comunitária, do bem comum, da amizade social. Corrói a vida comunitária e a nossa própria humanidade. O tribalismo e a desunião (diabolização) não se conjugam com a fraternidade universal.
Mais difícil é o argumento de que devemos explorar a polarização. Por explorar, não digo promovê-la por si, pois não entendo a polarização como um fim em si. Refiro-me à capacidade de mergulharmos nela, de a investigarmos e dialogarmos com e dentro dela. Correndo riscos, sobretudo dos argumentos da contraparte serem melhores que os nossos ou, mesmo não sendo, ressoarem com mais força junto dos instintos humanos.
De facto, era mais fácil estarmos todos na mesma página, fechados em guetos. Mas aí não há bem comum, e numa sociedade homogénea não há liberdade
No entanto, julgo que aceitar a polarização e combater o tribalismo são duas faces da mesma moeda, que precisam uma da outra: o combate ao tribalismo sem aceitar a polarização é um exercício totalitário de uniformização; aceitar a polarização sem combater o tribalismo não serve de nada.
Dar palco à polarização dá trabalho. Implica estar constantemente à escuta, a rever posições, saber calar, mas também saber intervir; ouvir barbaridades, e responder com outras quantas. De facto, era mais fácil estarmos todos na mesma página, fechados em guetos. Mas aí não há bem comum, e numa sociedade homogénea não há liberdade. Aquilo que nos caracteriza enquanto pessoa, é a nossa capacidade de contribuir para o bem comum através do que é nosso. E essa contribuição só serve se se confrontar com posições diferentes, num ambiente comunitário. Isto é, com polos opostos, numa comunidade não-tribal.
Estou convencido que andamos a usar as armas certas com o inimigo errado: batemos na polarização até mais não, quando devíamos era bater no tribalismo. E ao fazê-lo, devíamos abraçar a polarização, a diversidade e a criatividade que traz consigo. Através das pontes da polarização, percorreremos caminhos que ainda não conhecemos. Mas só esses caminhos, longos, mas fraternos, conduzem à construção do bem comum.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.