Não gosto da expressão perder uma pessoa. Por isso, de cada vez que reflito sobre o fim de uma vida que me é mais ou menos próxima, não a emprego. Acho que a expressão não é mais do que uma pequena mentira, inofensiva, que contamos aos outros e a nós próprios.
Não perdemos pessoas. As pessoas não se perdem; pelo menos, não se perdem deste modo. Sabemos bem onde elas estão, ainda que não as possamos ver, tocar ou sentir. Elas não se perderam; estão, simplesmente, mais longe. Continuam perfeitamente alcançáveis. Reencontramo-las se fecharmos os olhos.
Mas sim: há pessoas que se perdem e não são poucas. Há pessoas que se querem perder, e são tantas as que gostam de andar perdidas: são as que fogem de nós. Felizmente, a cada dia que passa, tornamo-nos mais experientes, e habituamo-nos à ideia de que muitas pessoas não querem nada connosco. Não tem mal. Nem sempre compreendemos porquê. São essas as pessoas que perdemos.
Repare-se que, por vezes, são os outros que nos perdem, porque também nós escolhemos afastar-nos deles, por uma ou por outra razão. Em vida, perdemos tantas pessoas. Cada pessoa perde a sua cota-parte de pessoas.
Não damos contas das perdas, porque os dias amontoam-se, e nem sempre temos disponibilidade ou tempo para processar a saída de algumas pessoas da nossa vida. Também não nos apercebemos imediatamente de que abandonámos pessoas outrora frequentes nos nossos dias. Não se percebe, mas é assim que funcionamos. Quando finalmente nos apercebemos, lamentamos os que saíram e os que se foram, mas apontamos baterias para os que ficam e para os que queremos que fiquem, porque carregam uma parte de nós.
À medida que vamos vivendo, despedimo-nos realmente de outras pessoas, e lidamos com dores de outro género. Tratam-se de dores esperadas, mas igualmente pesadas. Pesadas, porque todas as vidas têm um peso próprio, que se deixa influenciar quase sempre por questões de antiguidade e de sanguinidade. Dores que fazem parte. E pessoas que partem.
Despedimo-nos delas, mas não as perdemos. De facto, sabemos muito bem onde elas estão: dentro de nós, à boleia do nosso sangue quente, suportadas por algumas das nossas manias, que, maravilha, se mostram hereditárias. Encontramo-las em fotografias que prezamos e em diversas coisas que nos são legadas, ou às quais deitamos simplesmente a mão: relógios cheios de anos e cheios de riscos (e, por isso, bonitos), gravatas clássicas que esperam a sua merecida rentrée e casacos de outros tempos, mas detentores de cheiros e confortos intemporais.
Duvido que, no fim, no momento da despedida, ganhemos qualquer coisa, pois somos alvo de uma subtração necessariamente cruel, mas passamos a contar com novas noções de vida. É garantido que ficamos mais pobres, mas há muito que sabemos que temos de lidar com determinadas pobrezas, que a seu tempo se mostram essenciais para a valorização de futuras riquezas que as contrapõem. As riquezas são exemplos e lições de vida. Procuramos por elas, e acabamos por identificá-las com mais ou menos dificuldade.
Uma vez que as encontramos, já não as perdemos. As riquezas são memórias, provas de uma vida de amor. Muitas vezes – quase sempre, na verdade – estão no canto de um dos olhos, ou na ponta de um sorriso comprido, quase centenário.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.