Há uns meses, à conversa com o meu filho mais velho, dei por mim a explicar-lhe a importância de se saber estar calado, mesmo que nem sempre se concorde. E de saber obedecer, mesmo que não se perceba logo o sentido da ordem. Nem sempre era pertinente questionar. Nem sempre era pertinente desobedecer.
O meu filho ouviu atentamente os meus argumentos mas, como bom adolescente, tratou de os rebater um a um, de forma convicta: “A geração da mãe obedecia de forma cega, por medo ou porque foi habituada a isso. A minha geração abriu os olhos. Não temos de fazer as coisas só porque nos mandam, se não fizerem sentido…”
Teci mais uns quantos argumentos em favor da minha causa, defendendo a ordem, por oposição ao caos que se instalaria se tudo fosse permanentemente questionado, assim como o respeito pela experiência dos mais velhos, por oposição à falta de experiência dos mais novos… mas ele tratou de me lembrar o nome de várias ditaduras que, pelo mundo fora, continuam a advogar a “ordem” para impor as mais cruéis decisões. E apontou inúmeros exemplos de “mais velhos” – de líderes mundiais a professores da escola – a quem a experiência parecia não ter servido de grande coisa, a avaliar pela falta de bom senso das suas decisões… Calar porquê? Obedecer porquê? Não estaria o mundo como estava exatamente por nos calarmos vezes demais perante o que não fazia sentido? Por obedecermos quando, dentro de nós, sentimos que é o oposto o que deveria ser feito?
“Criei um anarca!”, pensei, de coração apertado. E perguntei-me seriamente se todas as noites que passara à conversa com os meus filhos, incitando-os a pensar pela própria cabeça, não me sairiam caras… Como “controlar” quatro filhos a quem eu desafiara a ter voz? Como “pô-los na linha” com um simples “porque sim”, se os ensinara a procurar sempre os verdadeiros porquês das coisas?
A ter errado, não parecia, no entanto, um problema exclusivamente meu, ou o meu filho não se assumiria como parte de uma geração que padecia do mesmo “mal”. E quantos pais e professores não ouvia eu, quase diariamente, a queixar-se da impertinência dos filhos e alunos? Que geração seria essa que, supostamente, teria “aberto os olhos”?
Fiz na altura aquilo que os meus filhos fariam: perguntei ao Google! E o Google respondeu-me que a geração até tinha nome – Geração Z, nascida entre meados dos anos 90 até meados de 2010, cerca de dois mil milhões de crianças e jovens espalhados por todo o mundo – e estava já na mira de vários investigadores. Depois da geração dos Millennials, apontados tantas vezes, quantas delas injustamente, como preguiçosos e caprichosos, chegaria ao mercado uma nova geração ainda mais tecnológica, que nunca soube o que era viver sem Google, mas que não esbarrou de frente na crise: cresceu já com ela e, por isso mesmo, sem as mesmas ilusões da geração anterior. Percebendo até que não adianta muito dedicar a vida a uma empresa que pode falir de um momento para o outro, ou abdicar de tempo para a família ou para fazer o que se gosta por uma ideia de carreira que, na verdade, pode ser fonte de infelicidade, problemas de saúde físicos e mentais.
Curiosamente, isso não implica uma demissão da esfera pública. Só não é a nossa… Eles criaram a sua, nas plataformas digitais. Mas falar atrás de um ecrã, tantas vezes de forma anónima, não conta, dirão alguns. Então e em que outros espaços temos damos oportunidade aos jovens de se expressarem?
Foi com essa ideia em mente que, no âmbito do Fórum Terra que aconteceu em maio do ano passado – uma iniciativa da Associação Fazedores de Mudança – colaborei na organização de uma Assembleia de Crianças e Jovens que reuniu 120 alunos no parlamento, para dizerem aos deputados presentes o que desejavam para o país e para o mundo. Para além dessas crianças e jovens, muitos outros participaram na iniciativa, enviando-nos as conclusões a que chegaram nas suas assembleias de escola. Eu própria ajudei a dinamizar algumas dessas sessões, onde pude constatar como, do silêncio e da desconfiança iniciais, os jovens mudavam de postura assim que percebiam que ali estávamos para os ouvir, e queríamos realmente saber o que eles pensavam, sem respostas estudadas nem frases dos manuais escolares. E o que eles disseram foi de uma enorme pertinência! Eles sabiam perfeitamente o que estava errado e apontavam-no sem problemas. Desafiados a isso, mostraram-nos ainda o quanto conseguiam ser criativos a apontar soluções. E não vou esquecer-me nunca de um aluno que, no final de uma sessão, nos disse “devíamos parar a escola uma semana só para falar sobre isto. Uma semana, não. Um ano inteiro! Primeiro consertávamos o mundo, depois logo seguíamos com os estudos…”
Caracterizar uma geração é sempre algo redutor, que não tem em conta todas as diferenças que existem, ligadas a contextos, educações ou personalidades díspares. Se eu em casa tenho quatro filhos tão diferentes uns dos outros… Também não sou naif ao ponto de achar que a impertinência dos jovens não resvala muitas vezes em falta de educação e de respeito pelos princípios mais básicos de qualquer civilização que se queira justa e organizada. Mas apetece-me muito desafiar os educadores para que olhem com olhos de ver para a pertinência que existe na impertinência destes jovens, que ligam a televisão e o computador e deparam-se com guerras e ataques terroristas em direto, barcos cheios de refugiados que são atirados para campos sem condições, líderes alucinados, desastres ambientais de consequências imprevisíveis… Jovens que sabem que vão herdar de nós este mundo e que têm plena consciência de que terão de fazer melhor. E fazer melhor terá, necessariamente, de passar por fazer diferente.
Enquanto mãe, sei que continuarei a não tolerar faltas de educação, mas estou hoje muito mais atenta às ténues fronteiras que separam a insubordinação do que é o legítimo questionamento, para que este não seja abafado, mas antes alimentado de conhecimento e sustentado em valores. Não vamos poder voltar aos anteriores modelos de autoridade (e se alguém o deseja, esqueceu com certeza como eles conduzem, mais cedo ou mais tarde, à ruptura). Se não vamos, temos de criar/aprender novos modelos de interação e liderança, e os pais, assim como os professores e educadores em geral precisam, como nunca, de se questionar também e de se disponibilizarem a aprender novas ferramentas. Este parece-me, sem dúvida, o maior desafio da minha geração de educadores…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.