Fará em breve um ano que a Beatriz partiu de surpresa e de forma abrupta. A Beatriz era e será sempre a filha, a irmã, a amiga, a colega, mas também a aluna.
A rotina que se escreve no tempo que vai passando não nos deixa sustê-lo e olhar o óbvio. A cada dia, em cada aula, o desafio de um professor é procurar ensinar, explicitar os conteúdos programáticos para os quais existe tanta pressão, ao mesmo tempo que tem de se desafiar a procurar despertar nos seus alunos a curiosidade de aprender; uma motivação intrínseca que nem sempre vive dentro de um aluno, mas que assim que desperta, começa a crescer e se alimenta a si própria. Entre as palavras que se dizem e se escrevem num quadro ou num tablet ou mesa digitalizadora, o professor deve procurar encontrar os ingredientes que possam gerar aquele olhar atento e curioso de um aluno, perguntas carregadas de ‘porquês’, e de ‘mas’ e fazer da sala de aula um palco de emoções positivas porque elas são essenciais para criar as condições favoráveis a uma melhor aprendizagem.
Numa turma generosamente curiosa, a Beatriz era uma nota de música singular, que tocou colegas, mas também professores. Pela sua curiosidade imensa não apenas pela psicologia, mas essencialmente pela sua curiosidade sobre o mundo, a música, a arte, a cultura, no seu todo. A Beatriz era como o leito de um rio que corre com pressa sem se cansar, que procura incessantemente respostas, mas também novas perguntas.
Talvez gostássemos de acreditar que as memórias deviam carregar apenas emoções positivas. Mas todos os sentimentos são importantes para o nosso desenvolvimento psíquico e a tristeza é, por isso, também ela essencial.
As memórias que guardamos estão carregadas de sentimentos. Talvez gostássemos de acreditar que as memórias deviam carregar apenas emoções positivas. Mas todos os sentimentos são importantes para o nosso desenvolvimento psíquico e a tristeza é, por isso, também ela essencial. Sem filtros e sem tempo. Ficar triste também é, então, preciso. As memórias transformam-nos como pessoas e fazem-nos traçar caminhos, seguir em frente, mesmo que a ritmos diferentes. Recordar a Beatriz é também dizer-lhe que importa seguir em frente.
Nos meus já 20 e poucos anos como professora ficará, sem dúvida, a memória da Beatriz, mesmo que acompanhada por um turbilhão de sentimentos, como se de notas soltas se tratasse, que fazem lembrar, ironicamente, o prelúdio de uma pandemia tocado ao piano.
Como professora, a Beatriz vem lembrar-me que é importante humanizarmo-nos e humanizar as aulas que damos. As aulas são palco de formas de comunicação verbal, mas também não verbal, imbuídas de emoções. As aulas são simultaneamente palco de transmissão de conhecimento, preciso, fidedigno, mas também palco de afetos. É possível ensinar com rigor e com regras, sem perder o essencial: a confiança, o respeito mútuo; dar palco aos alunos porque são eles construtores do seu caminho; inspirar; guiar o caminho que o aluno vai traçando em períodos de desenvolvimento onde ele se tenta descobrir a si próprio, descobrir quem é, o que faz bem, quem pode ser um dia. Só se faz ao caminho quem sente confiança, sendo, por isso, fundamental, dar confiança, acreditar no talento de cada aluno e no seu potencial.
Ainda que fomentar uma relação positiva entre professores e alunos não seja linearmente sinónimo de mais sucesso, o aluno que encontra no seu professor uma fonte de suporte irá interagir mais com ele, o que pode por si potenciar um feedback mais construtivo e motivador. Talvez sejam estes pequenos aspetos que estão ligados ao facto de ao longo do nosso percurso escolar apenas ficarmos com a memória de alguns professores. Quais os professores que lembramos? Porque os lembramos?
Beatriz vivia no palco do teatro, no coro, na música. A aula era também palco de risos, daqueles bons, que promovem o debate, que dão vida a um role-play simulado em sala aula.
Beatriz, para mim serás sempre um mês de maio, uma brisa de uma manhã ainda fresca, mas que se entranha, que rodopia como uma suave melodia, e que aquece a alma. Até um dia, onde quer que estejas.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.