No decorrer de 2019, realizar-se-ão eleições em vários países da América Latina, com fortes expectativas de mudança de governos. Por sua vez, já em 2017 e 2018 se verificaram mudanças significativas nas cores políticas dos governos do Chile, Brasil, Paraguai, México e Colômbia. Nesse sentido, com exceção dos governos populistas da Venezuela e da Nicarágua, somados à ditadura cubana de mais de sessenta anos, no resto do continente o funcionamento democrático dos países tem vindo a fortalecer-se. Por outro lado, se na última década o continente foi governado principalmente por partidos políticos de esquerda, com ênfase na redistribuição e reconhecimento de direitos, começaremos esta década com governos de direita, que despontam como uma reação desencantada à frustração das promessas progressistas.
De acordo com o Relatório “Latinobarómetro 2018”, o apoio dos cidadãos à democracia diminuiu em 5%, de 53% em 2017 para 48% em 2018 . Além disso, o apoio à democracia na América Latina tem vindo a descer desde 2010, o ano de maior apoio, onde atingiu 61%. Para Marta Lagos, diretora da corporação “Latinobarómetro”, 2018 tem sido um annus horribilis para a democracia, com um aumento do descrédito em relação a esta. Para tal têm contribuído as alegações de corrupção e ineficiência da democracia a que as populações têm vindo a assistir, o que tem feito aumentar o descrédito e ineficácia do sistema, na medida em que este se tem mostrado incapaz de dar resposta aos anseios dos cidadãos.
Por outro lado, depois de mais de uma década de crescimento económico, a classe política latino-americana não conseguiu resolver o problema da pobreza estrutural. Este núcleo duro de pobreza, juntamente com a queda da confiança institucional e o fim da estabilidade económica, ao qual acresce o medo de planos de ajuste estrutural das décadas passadas, gerou o terreno fértil para o surgimento de líderes políticos que coletam esse descontentamento, e chegam ao poder através de eleições livres, gerando “autoritarismos eleitorais”.
Nesse sentido, creio que tais sentimentos por parte dos cidadãos são um sintoma de diferentes enfermidades sociais que o funcionamento da democracia não soube ou não quis entender e que, se não são detetados a tempo, vão continuar a gerar populismos messiânicos que, prometendo o céu na terra, geram antes o inferno para todos. O exemplo do caminho adotado pela democracia venezuelana dos últimos sessenta anos é suficiente para perceber isso.
Neste contexto, acredito que além do “correto” funcionamento eleitoral, existem dois problemas estruturais nas sociedades que, enquanto não forem atacados na raiz, continuarão a afetar a qualidade institucional dos países e a valorização da democracia representativa.
Os Estados desenvolveram uma série de planos de ajuda económica que, embora capazes de responder à emergência social, acabam por ser terreno fértil para a destruição da cultura do trabalho e da inovação e para a tentação populista de trocar votos por ajuda económica.
Em primeiro lugar, uma ruptura nas sociedades que, por causa da desigualdade, rompe os laços da solidariedade social. Nesse sentido, para aliviar essa desigualdade, os Estados desenvolveram uma série de planos de ajuda económica que, embora capazes de responder à emergência social, acabam por ser terreno fértil para a destruição da cultura do trabalho e da inovação e para a tentação populista de trocar votos por ajuda económica. Esse sistema gera um abismo entre os que precisam e os que não precisam do Estado para sobreviver, estimulando o ressentimento e a frustração social.
Em segundo lugar – causa ou consequência da anterior – está o problema da corrupção estrutural, como única maneira de governar os países. Este modus operandi destruiu as expectativas democráticas dos cidadãos e deixou neles um desencanto generalizado em relação à classe política. Isso pode ser canalizado de duas maneiras: esperar por um messias terreno que venha a ordenar a sociedade, como Bolsonaro no Brasil, ou adotar um cinismo desiludido diante do sistema.
O Papa João Paulo II, nos números 46 e 47 da Encíclica Centesimus Annus, diz que a democracia é um sistema ético, na medida em que é capaz de assegurar a participação dos cidadãos nas decisões da comunidade e garante a possibilidade de eleger e controlar os governados. Por outro lado, para que funcione adequadamente, a democracia pressupõe a existência de um Estado de Direito e de estruturas na sociedade civil que salvaguardem a participação e a responsabilidade compartilhada.
Distorções políticas como a corrupção e a incapacidade de desenvolver uma solução para os problemas das pessoas, geram desconfiança e apatia e a correspondente diminuição na participação cívica, porque a população se sente desiludida por uma elite que mostra estar desligada daqueles que são os seus anseios.
No entanto, distorções políticas como a corrupção e a incapacidade de desenvolver uma solução para os problemas das pessoas, geram desconfiança e apatia e a correspondente diminuição na participação cívica, porque a população se sente desiludida por uma elite que mostra estar desligada daqueles que são os seus anseios. Nesse sentido, como forma de superar esses males apontados acima, a democracia latino-americana precisa de uma forte reforma ética, de modo que a política volte a ser um instrumento que promove a “vida boa” para todos os habitantes, sob um ethos de solidariedade, em vez de um sistema que cria vítimas de frustração ou desencanto.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.