Outonar

O Outono é o tempo dessa renovação visível, em que o que é largado fecunda o chão que vamos pisar mais à frente, deixando o ramo limpo para o que há de nascer.

Começa agora o meu tempo favorito do ano, aliás, recomeça, pois, é esse o verbo correto para aquilo que acontece em ciclos, como é o caso das Estações.

Venha de lá esse Outono que já se anuncia há umas semanas, nos dias encurtados que querem terminar mais cedo. Apercebi-me disso num domingo, quando no final da Missa, olhei para o alto, para a figura grande de Cristo crucificado por cima do altar-mor e já não havia luz na janela altaneira que, durante uns bons meses, ao final do dia, iluminava ainda aquela Paixão. Quando saí, o dia (ainda quente), já havia começado a dar lugar a outra luz, mais branda, mais amena e, para mim, isso vem como um abraço de consolo, o anúncio de um tempo mais suave em que o meu leque é guardado numa gaveta, até ao Verão que virá.

No Outono entram em cena outros adereços dos nossos cenários: a manta, o sofá, a caneca de chá, um bom livro, um animal enroscado aos nossos pés, um poema que se lê devagar e que se anota à margem porque a sua leitura noutra estação pode já não ser a mesma. “Quando, Lídia, vier o nosso Outono…”.

O Outono é o tempo em que a Natureza se recicla a si mesma, em que vemos as árvores a largar a folhagem seca e a pintar o chão em tons de vermelho e ferrugem, numa tapetagem sem igual em qualquer outra época do ano. Os meus olhos enchem-se e regalam-se com essa arte natural e nunca resisto a guardar em fotografia o que acontece ao meu redor, nas avenidas, nas ruas, nos parapeitos das casas, nas floreiras, nos jardins. O Outono é o tempo dessa renovação visível, em que o que é largado fecunda o chão que vamos pisar mais à frente, deixando o ramo limpo para o que há de nascer.

Não deixa de ser curioso que na origem etimológica da palavra Outono esteja o latim “autumnus” ou “tempus autumnus”, isto é, o tempo da colheita, do amadurecimento. Quantas vezes a Sagrada Escritura fala desse tempo que é de desapego fértil e de maturação, de safra dos frutos esperados, afinal, “Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu (…) tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou” (Ecl 3, 1-2). E Deus, no seu lugar sem princípio nem fim, é pródigo quando organiza o tempo que nos oferece a nós, a sua mais querida criação: “Darei chuva à vossa terra no devido tempo, chuva de Primavera e chuva de fim do Outono e colherás o teu trigo, o teu vinho e o teu azeite” (Dt, 11, 14).

Quantas vezes a Sagrada Escritura fala desse tempo que é de desapego fértil e de maturação, de safra dos frutos esperados, afinal, “Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu (…) tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou” (Ecl 3, 1-2). E Deus, no seu lugar sem princípio nem fim, é pródigo quando organiza o tempo que nos oferece a nós, a sua mais querida criação: “Darei chuva à vossa terra no devido tempo, chuva de Primavera e chuva de fim do Outono e colherás o teu trigo, o teu vinho e o teu azeite” (Dt, 11, 14).

Talvez eu própria esteja no Outono da vida; deixei para trás a juventude inquieta e a mulher balzaquiana que reivindicou identidade, tudo isso são linhas circulares gravadas no tronco da minha existência. Agora, recolho com calma os frutos dessas épocas e preparo, sem medo nem agrura, o inverno que virá, aproveito o vagar de quem já percebeu que o tempo é uma riqueza maior, que os amigos são dom da vida, que a família é o nosso tesouro não escondido, que a fé é sinónimo de esperança e que o que se vive devagar, permanece connosco mais tempo. O Milan Kundera fala disto no primeiro romance que escreveu em língua Francesa, no qual associa a lentidão (palavra que dá título ao livro) à memória: “Na matemática existencial, esta experiência assume a forma de duas equações elementares: o grau da lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória, o grau da velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento”. Vivamos, pois, mais devagar que a vidinha já se encarrega sozinha de correr sempre à nossa frente.

O Outono é o tempo do ocaso, do repousar do sol, da diminuição arrastada da temperatura que nos vai, aos poucos, resguardando em casa, na roupa, no lado mais de dentro. O Outono é também isso, o tempo da intimidade, em que o calor deixa de estar lá fora e passa a ser procurado no espaço interior, nos outros que fazem parte da nossa cartografia mais próxima. Talvez nisso o Outono seja um tempo mais doce, mais afável, sem escaldões nem arrepios, um tempo mais paciente que convida ao aconchego e ao outro.

Vamos outonar, portanto, com todos os recomeços das rotinas, com o horário das horas que se altera, com o convite a largar aquilo que já não nos serve e a recomeçar, a fecundar uma vida mais abundante, enraizada num amor maior.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.