Os braços no ar, os olhos no ecrã. Na plateia de um concerto, é impossível ignorar como são cada vez mais os que escolhem ver através de um telefone aquilo que se passa a poucos metros. Não é por acaso que o fazem. A visibilidade tornou-se numa prova de existência. Se não existe uma imagem para o provar, não aconteceu. E é por isso que, andando pelas redes sociais, nos deparamos com as fotografias de jantares de amigos com grupos que não conhecemos, com a foto da ida ao ginásio, com o vídeo do espectáculo.
Essa obsessão por ser visto tem um reverso: acreditamos, cada vez mais, que o que não vemos não existe. Virar a cara tornou-se numa das armas políticas mais eficazes. Os políticos já o sabem há muito e é nisso que apostam quando ignoram protestos que se prolongam no tempo. Sabem que, quando quem protesta perde atenção, o assunto está arrumado. É assim que se vencem manifestações de professores, médicos e enfermeiros.
Sabem que, quando quem protesta perde atenção, o assunto está arrumado. É assim que se vencem manifestações de professores, médicos e enfermeiros.
Nesta luta permanente por atenção há, contudo, quem não tenha as mesmas armas para se fazer ver. E, por isso, deixa de existir. Ou existe apenas na sua forma mais básica, a de uma caricatura, uma ilustração usada para colorir reportagens com casos de tons humanos, mas incapaz de gerar movimentos de protesto e reivindicações de mudança.
Os pobres são, quase sempre invisíveis, mas são ainda mais invisíveis quando são velhos. A velhice é um problema a que ninguém que sobreviva escapará, mas esse problema será tanto mais grave quanto mais pobre se for. Sabemos que estamos todos a ficar mais velhos e sabemos também que estamos, cada vez mais, em risco de ficarmos mais pobres, mesmo trabalhando. Porque é que isso não nos ocupa, então, mais tempo de discussão pública?
Sabemos que estamos todos a ficar mais velhos e sabemos também que estamos, cada vez mais, em risco de ficarmos mais pobres, mesmo trabalhando. Porque é que isso não nos ocupa, então, mais tempo de discussão pública?
Olhemos para os números. Dados recolhidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) na primavera de 2021 mostram que um em cada dez trabalhadores portugueses vive abaixo do limiar de pobreza. O número duplica no caso das mulheres. Temos, segundo o INE, 1,9 milhões de pobres a viver em Portugal. Não é coisa pouca e, contudo, estas notícias passam como nota de rodapé, quase sempre reduzidas à frieza da estatística, sem direito a grandes análises e debates que não os da macroeconomia política. Sabemos pouco de quem são, onde vivem e como vivem estas pessoas. Na verdade, não pensamos nelas sequer como pessoas. São pobres.
O caso piora quando se trata de velhos. Vejamos a notícia, dada por vários jornais no início de junho, sobre aquilo a que se chama “internamentos sociais” e que, na prática, são pessoas demasiado velhas e pobres para saírem do hospital depois de terem alta médica. Num dos títulos, lia-se que os “internamentos sociais sobem 60% e podem custar mais de 226 milhões ao Estado”. As notícias detiveram-se no custo e no incómodo que estas pessoas indesejadas representam para o Sistema Nacional de Saúde.
Estes indesejáveis são pessoas sem família ou com famílias sem condições para suportar os elevados custos que representa dar-lhes acompanhamento e cuidado, em casa ou em instituições. É que, neste país de pobres, um lar com um mínimo de condições custa entre 1500 a 2400 euros por mês. A pensão média em Portugal está nos 550 euros.
São e serão, cada vez mais os que precisam deste tipo de cuidados. Segundo o último Censos, há cerca de 360 mil portugueses com mais de 80 anos. Mas são 2,2 milhões os maiores de 65 anos e, em 2080, estima-se que haverá em Portugal 300 idosos para cada 100 jovens. Ninguém diria olhando para o espaço mediático e político que ocupam os velhos.
Segundo o último Censos, há cerca de 360 mil portugueses com mais de 80 anos. Mas são 2,2 milhões os maiores de 65 anos e, em 2080, estima-se que haverá em Portugal 300 idosos para cada 100 jovens. Ninguém diria olhando para o espaço mediático e político que ocupam os velhos.
Não há político que resista a um discurso feito para esse horizonte mágico que são “os jovens”. Há sempre anúncios vistosos de “políticas para a juventude” e frases preocupadas sobre como as crises afetam os mais novos. Nada contra. Mas porquê tanto silêncio em relação a uma fase da vida para qual todos (com sorte) nos encaminhamos?
Enquanto uns ignoram, outros sofrem. E, claro, o mercado vê aí uma oportunidade. Há cada vez mais notícias sobre a forma como grandes multinacionais encontram forma de transformar em lucro o desamparo de velhice. A uma crescente indústria de lares cada vez mais desumanizados, juntam-se agora imobiliárias como a espanhola Almagro Capital, que alicia os mais velhos a vender as suas casas para se tornarem usufrutuários ou inquilinos dos próprios lares, em troca de uma liquidez de que precisam até para comer. Quem vende troca o património por euros, quem compra aposta na morte que os tornará donos de um activo altamente valorizado.
Tudo isto se passa de forma quase invisível, sem que ninguém se questione sobre se faz ou não sentido que o Estado crie uma rede de cuidados sociais para idosos, como poderemos valorizar as pensões e que tipo de apoios é preciso criar para garantir que o fim da vida não seja uma agonia feita do sobressalto da pobreza.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.