O confinamento em casa tem-me proporcionado desenvolver a perceção de a humanidade ser uma complexíssima e robusta cadeia de interdependências. Ainda hoje pela manhã procurei realizar um exercício simples: ao confrontar-me com determinado objeto pensar nas pessoas a quem era dele devedora.
Extensas listas se desdobraram na minha cabeça. No caso da embalagem do leite, por exemplo: o produtor pecuário, as pessoas envolvidas no fabrico dos materiais da embalagem, o senhor que transportou as paletes até ao estabelecimento comercial, a pessoa que o limpou, aquelas que trataram da parte administrativa de todos estes processos, entre muitos outros atores. Sentei-me na cadeira, fiz um raciocínio semelhante em relação a esta, ao frigorífico, aos azulejos, à janela, ao pão, ao comprimido para a dor de cabeça…
Cada objeto olhado com esta ânsia de busca pela sua genealogia e pelos seus bastidores repentinamente povoava o meu espaço de uma multidão de pessoas desconhecidas que me ajudaram milimetricamente, sem que eu as conhecesse, sem que me conhecessem. Ao estar aqui ao computador a escrever este texto, vem-me a imagem das fábricas onde se produziram as suas várias peças, questiono-me quanto receberá o jovem operário que terá aparafusado algumas delas, estou próxima de quem está longe e sou até cúmplice de injustiças das quais, como o pecado original, tenho culpa sem ter culpa.
De repente, a minha vida passa por uma máquina de Raio-X que permite ver que no seu interior estão muitas mãos anónimas que me sustentam microssegundo a microssegundo. Estão, por isso, entre serem o símbolo e a evidência de Deus criador e recriador ininterrupto, pois que a criação talvez seja um acontecimento microssegundo a microssegundo permanente que Deus na sua misericórdia partilha com todos os Homens, seres vivos e matéria, e não um momento original solene e perdido no início do tempo.
Cada objeto olhado com esta ânsia de busca pela sua genealogia e pelos seus bastidores repentinamente povoava o meu espaço de uma multidão de pessoas desconhecidas que me ajudaram milimetricamente, sem que eu as conhecesse, sem que me conhecessem.
Nesta rede imbricada de interdependências estão os «homens do lixo» (cujo nome correto é o de «trabalhadores de recolha de resíduos», ambiguamente chamados também de «cantoneiros»). Por vezes nas minhas insónias oiço-os… o barulho da viatura, o bater dos contentores. Eles são a metáfora perfeita dos amigos porque são aqueles que levam para bem longe de nós a porcaria que sobra do nosso devir. Que nos preservam da experiência do nojo, que nos poupam a uma vida inóspita, que nos purificam do reverso sinistro da nossa sobrevivência. Que nos consolam de todos os castings existenciais que nos saíram furados, que evitam que os nossos lugares, reais ou simbólicos, interiores ou exteriores, se autodestruam. Que nos livram do mal.
A inteligência cristã é necessariamente uma inteligência dramática, quase no sentido de inteligência teatral. Vive de personagens, do enredo, da trama e do drama, do agon e do pathos… da vida, morte e ressurreição de Jesus. E do cruzamento destas com os personagens, enredos, cenários… que traçam a existência de cada um. Assim, o personagem do homem do lixo, que habita os nossos quotidianos sempre por trás do pano de fundo, pode ser uma chave hermenêutica para interpretarmos o mistério da salvação.
Jesus é o amigo (o «homem do lixo») que resguarda e elimina tudo o que de pior se pode ser, fazer e viver. Porque «afastou de nós os nossos pecados para tão longe» (Sl 103), porque afasta de nós o que é corrompido e corruptível. Por opção (por perdão), não teve medo nem nojo de ir à mansão dos mortos, ao palácio dos solitários, ao bonito-feio e claro-escuro subterrâneo de cada um.
Cheguei a esta Páscoa de coração infetado e já carcomida pela errância das convicções. Desgastada por esta condição de não conseguir deixar de rezar e de acreditar como uma burguesa superprotegida. Pensei dolorosamente que, assim sendo, dificilmente viveria a Páscoa com aquela sinceridade de coração que permite ir «até ao fim do mundo / para morrer da sua morte». Mas estas poucas forças induziram ao milagre da simplificação e proporcionaram que nesta Páscoa reaprendesse a ver Jesus como o amigo – o melhor amigo, como tão magnificamente se aprende na catequese. Eu que, no fundo, sempre desconfiei deste modo de chamar Jesus porque aparentemente parece infantil, pouco grave.
Ele é, no segredo do quarto fechado, a reserva dos desabafos desnecessários, o altar onde colocamos desde os «grandes desgostos» ao que temos de mais ridículo, retribuindo-nos Ele com a simbiose entre a maior seriedade e a maior alegria.
Como amigo, o melhor dos amigos, Ele é o acumulador das nossas memórias mas também o garante de que não são esquecidas pois também a elas não deixa morrer, porque nos são. Ele é, no segredo do quarto fechado, a reserva dos desabafos desnecessários, o altar onde colocamos desde os «grandes desgostos» ao que temos de mais ridículo, retribuindo-nos Ele com a simbiose entre a maior seriedade e a maior alegria.
Deus excelso e belo feito «acrobata da dor» visitou o espaço vago entre cada dúvida, a casa que empresto a angústias peregrinas, o centro perturbado das insónias em que ensaio uma anuência perfeita ao «mistério da fé», as praças onde vão dar as corridas que todos os dias faço teimosamente para lado nenhum. Jesus «amando mais do que o amor é capaz», deu-nos um fim infinitamente maior que o fim.
Notas: ao abordar a «inteligência dramática» inspirei-me no pensamento do teólogo Hans Urs von Balthasar; «Vou até ao fim do mundo / para morrer da sua morte» corresponde aos dois últimos versos da letra de Maria do Rosário Pedreira do «Fado com dono» que Aldina Duarte interpreta; «acrobata da dor» é uma expressão do poeta brasileiro Cruz e Sousa; «Amando mais do que o amor é capaz» ocorre na música «Lembra de mim» de Dorival e Nana Cayimmi.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.