Há dois desaparecidos num naufrágio em Tróia. A televisão mostra o bairro em que viviam enquanto relata os meios que, três dias depois do desaparecimento, continuam a procurar os corpos. O pivot passa para outro ponto de reportagem. No Montijo desapareceram “dois nepaleses” e a repórter no local explica que as autoridades não retomaram as buscas por um dos homens, cujo corpo não foi ainda resgatado. Os meios, sublinha a jornalista, serão os da “patrulha normal”. Um mês depois, as notícias não nos contam o que aconteceu a este corpo.
Os corpos não valem todos o mesmo. É isso que nos conta a narrativa dominante quando para uns todos os esforços são feitos e outros, que trazem colada à pele a nacionalidade como uma marca que os diferencia, são deixados no mar, ao sabor das marés e do esquecimento.
Quando uns são “desaparecidos” sem outros qualificativos e outros são “nepaleses”, como se isso fizesse diferença no naufrágio, há uma mensagem que passa nas entrelinhas: uns são dos nossos, os outros não. E isso desumaniza-os.
Como teria reagido o país se uma casa no Porto, onde dormiam portugueses, fosse invadida por um grupo de estrangeiros, que tivesse forçado a entrada para os espancar? Haveria nas notícias do caso referência a alguma onda de assaltos que pudesse explicar estas agressões? Poderíamos sequer acrescentar uma adversativa, que tentasse explicar os motivos dos agressores?
O racismo é a ferramenta pela qual tornamos menos humanos aqueles que são, pela biologia, semelhantes a nós em tudo. São nossos iguais à luz de todas as leis da natureza, mas esta ferramenta ideológica permite-nos assumir uma posição de superioridade que serve sempre para explorar e oprimir aqueles que identificamos como “os outros”. É bom não termos ilusões. É para isso que serve o racismo e é para isso que ele é perpetuado, para que haja quem explore e oprima.
São nossos iguais à luz de todas as leis da natureza, mas esta ferramenta ideológica permite-nos assumir uma posição de superioridade que serve sempre para explorar e oprimir aqueles que identificamos como “os outros”. É bom não termos ilusões. É para isso que serve o racismo e é para isso que ele é perpetuado, para que haja quem explore e oprima.
Mas, se o objetivo é fundamentalmente económico, e por isso bem racional, o método passa por estimular as emoções mais primárias, os medos mais irracionais, as crenças mais infundadas. E é por isso que o racismo avança como uma chama em mato seco, por muito que as evidências científicas e os dados estatísticos o tentem desconstruir.
Até as crianças o percebem. Cinco juntaram-se numa escola de Lisboa para atormentar um menino nepalês de nove anos, enquanto um sexto filmava as agressões, que agora circulam por grupos de Whatsapp. Ana Mansoa, diretora executiva de uma instituição da Igreja Católica, o Centro Padre Alves Correia (CEPAC), denunciou o caso à Rádio Renascença e não hesitou em usar a palavra “linchamento” para descrever o que aconteceu.
A criança, que ouviu insultos racistas enquanto lhe batiam, ficou com feridas abertas e hematomas por todo o corpo. Mas o que mais impressiona é o facto de os pais não o terem levado ao hospital nem terem feito queixa às autoridades por temerem represálias. É este o tamanho da impunidade do racismo. É esta a medida do medo das suas vítimas. E isso tem de nos fazer pensar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.