Senhor, vem sossegar-nos neste jogo da apanhada entre nós e o nosso próprio presente, do qual saímos quase sempre derrotados.
Este é o primeiro artigo de opinião propriamente dito que escrevo. Para assinalar esta efeméride, achei por bem opinar exatamente sobre o fenómeno da literatura de opinião.
Começo por uma aproximação ao número de textos de comentário da atualidade que se publicam em Portugal. Num pequeno exercício estatístico, tomei como período a contabilizar a semana de 4 a 10 de março de 2019, como amostra os cinco jornais de informação de maior tiragem em Portugal no ano de 2018 (excetuando os de distribuição gratuita), e como critério de quantificação os textos publicados na coluna «opinião» da versão digital dos mesmos jornais.
O resultado foi o seguinte: durante aqueles sete dias publicaram-se no total 267 artigos de opinião no Expresso, no Correio da Manhã, no Diário de Notícias, no Jornal de Notícias e no Público.
Proporcionalmente, e apenas para a mesma amostra, a estimativa é de 1000 a 1100 textos de opinião publicados num mês, entre 13000 e 14000 publicados num ano, o que corresponde sensivelmente a 38 publicados por dia.
Proporcionalmente, e apenas para a mesma amostra, a estimativa é de 1000 a 1100 textos de opinião publicados num mês, entre 13000 e 14000 publicados num ano, o que corresponde sensivelmente a 38 publicados por dia. Se fossem somados a esta restrita amostra os restantes jornais, as revistas, os jornais eletrónicos e ainda os minutos de televisão e de rádio dedicados ao comentário político-social, os resultados alcançariam um valor astronómico.
Como é que historicamente se explica esta explosão de textos de opinião e de comentadores, que, sintomaticamente, ninguém comenta?
Vamos considerar que antes de Gutenberg, e da revolução industrial antecipada que ele operou no domínio das letras, os textos eram escritos a partir de ideias ou como comentários a outros textos «maiores». Veja-se o caso dos autores da Patrística, que comentaram a Bíblia e partiram da grande produção filosófica e literária coetânea ou anterior. Recorrendo a estas duas fontes, o período da Escolástica prosseguiu com o desiderato do acesso à verdade pelo debate das ideias. Penso que este percurso histórico muito simplificado terá equivalências noutras religiões e espaços.
A revolução da imprensa permitiu aproximar a palavra do acontecimento: a escrita tornou-se mais veloz, capaz de acompanhar o andamento presto dos factos. Além da escrita sobre a ideia a-temporal, possibilitou-se a escrita sobre o acontecimento diário. Atualmente, com a revolução informática e os hábitos construídos em torno das redes sociais, que quase alcançam um valor de rotina existencial básica (comparáveis ao sono e à alimentação), a palavra atropelou o acontecimento. Assim nasceu o artigo de opinião.
É um novo género literário gerado no cruzamento entre a notícia e o ensaio, que tutela o modo de participação no espaço público, agilizando ao máximo o percurso entre a opinião pessoal e a opinião pública.
Na época pré-imprensa, as meta-narrativas e os mitos posicionavam-se num âmbito transcendente ao tempo. Na época da imprensa, a do jornalismo, a palavra tinha a medida do facto. Neste pós-imprensa, a opinião pré-existe ao facto e torna-o um pretexto para ser dita. Ela tende a resultar na «hiperconcentração» num «hipofacto», na intriga intelectualizada, num imediatismo inconciliável com a lentidão própria do estudo.
O exponencial aumento da literatura de opinião também se explica pelo embaratecimento da palavra escrita. Outrora, escrever representava um grande investimento, pelo que os primeiros textos da Humanidade existiram porque justificavam os custos e o esforço, dada a sua sacralidade ou a sua utilidade: os religiosos, aqueles com uma finalidade comercial de elencar objetos (as listagens babilónicas), de instruir na transmissão da memória e do saber coletivos, etc.
Hoje existe uma indústria impercetível da opinião em que os autores funcionam como marcas. Escreve-se sobre temas políticos minúsculos, até e para além de os esgotar com palavras repetidas e ironias fáceis.
Hoje existe uma indústria impercetível da opinião em que os autores funcionam como marcas. Escreve-se sobre temas políticos minúsculos, até e para além de os esgotar com palavras repetidas e ironias fáceis.
Parte dos artigos de opinião corresponde a uma indignação ou contra-indignação requentada nas mesmas premissas ideológicas. Outros há que não temem o tédio do rigor descritivo nem o perigo de dizer algo novo, sintetizando talvez em poucas palavras um tempo longo de leituras e de pensamentos inseguros.
Os textos de opinião oferecem ao leitor uma causa, mais pela via da injustificação do que da justificação. Oferecem amigos e inimigos. De qualquer modo, amortecem o impacto que tem no indivíduo a perceção dos níveis de brutalidade moral, de sofrimento e de injustiça que o homem pode experimentar.
Como coletivo, o que pretendemos com estes 267 artigos de opinião que se escrevem por semana em apenas cinco dos nossos jornais? O que é que societariamente produz e produzirá esta febre da opinião? O que ainda há por dizer?
Este foi o primeiro artigo de opinião propriamente dito que escrevi. Permitam-me, pois, terminar com esta oração do comentador:
Senhor, vem sossegar-nos neste jogo da apanhada entre nós e o nosso próprio presente, do qual saímos quase sempre derrotados. Dá-nos o dom da delicadeza intelectual para fazermos justiça à profundidade e à gravidade que no mundo existe. Dá-nos também a capacidade de esperar pela sabedoria, porque ela sempre tarda na volta pelo labirinto da realidade.
Uma vez mais, coloca em nós algo ainda nunca dito. Faz o suave milagre da desmultiplicação das palavras. Que cada texto ajude a encher de discernimento os corações e a devolver-lhes o horizonte mais largo que a monotonia da vida roubou. Capacita-nos com aquela literacia de lucidez e compaixão que se aprende no silêncio da Tua presença. Livra-nos da queixa pelo irrisório e constitui-nos portadores das lamentações mais justas. Livra-nos do mal e torna-nos instrumentos disso mesmo. Ámen.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.