Primeiro, o silêncio. Assim que se sai do autocarro, por definição barulhento e sobretudo quando vários idiomas se tentam fazer ouvir ao mesmo tempo, é o silêncio que nos abraça e nos consome. As cores de outono já pintam o chão, com as árvores a perder folhas a cada rajada, o sol ainda aquece mas é frio o que se sente quando olhamos para o portão. Vamos embarcar na viagem da memória. Das memórias.
Estamos às portas do lugar mais mortífero do mundo, e aqui só pode entrar silêncio – porque só ele nos permite ouvir, ver e tentar adivinhar os horrores que por ali passaram. E é dele que precisamos para que, no regresso, nos ecoe a frase que tantas vezes ouvimos mas que agora nos faz ainda mais sentido: “Aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo” (George Santayana).
Visitar o passado é, por norma, experiência dolorosa porque nos obriga a reviver erros, a pensar em ações e a analisar consequências. Em tempos como os de hoje, revisitar as memórias devia ser obrigatório em todas as escolas, em todas as casas, a cada telejornal, revista, jornal, publicação nas redes sociais que nos entra pelos olhos.
Assim sem grande esforço, e enquanto respirava fundo para atravessar um dos mais temíveis portões da nossa História, ia-me inteirando do estado das manifestações e conflitos em Barcelona, no Chile, no Líbano, em Hong Kong. Para não falar da Síria, do Iraque, da tragédia do Mediterrâneo, de Moçambique…’Como chegámos até aqui?’, pensei para mim. E entrei.
“Arbeit macht frei”
Visitar os campos de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau é sobretudo visitar o terrível interior do ser humano que teimamos em ignorar. Ali, por entre a luz que banha os edifícios perfeitamente alinhados, de fachadas iguais, enganadoramente simples e de linhas direitas e bonitas, com os prados verdes que se estendem para além de vedações que quase não se vêem contra o céu azul, o homem experimentou o pior da sua própria humanidade: um dia, alguém perdeu a empatia por outro alguém e achou-o indigno da condição humana. Um dia, alguns outros perderam a capacidade de se identificar porque se agarraram a poderes, a medos, a crenças, e despiram, literal e figurativamente, semelhantes seus de roupas, de cabelo, de dignidade, de vida.
Ali, famílias inteiras – mães, pais, avós, crianças, bebés – entravam de sorriso no rosto e serenidade no olhar (verdade, as fotografias provam-no) na esperança de uma vida nova. “Chegavam na primavera, olhavam para estes campos lindos, não sabiam o que ‘ir para a direita ou para a esquerda’ significava e entravam nas filas [da direita] para morrer numa câmara de gás com este olhar tranquilo e otimista”, explica a guia. Uma hora depois estavam mortos.
Entrar numa câmara de gás em Auschwitz, hoje, é ser confrontado com marcas de unhas que arranharam paredes, com memórias dos gritos de quem se sentia a sufocar, com as imagens de todas as crianças, mulheres e homens que vimos antes. Têm nome. Tinham vida. Tinham esperança. Tinham amor no coração. Eram pessoas como eu. Como nós.
Ouvir o silêncio ensurdecedor de Auschwitz é perguntar a cada alameda percorrida, a cada camarata despida, a cada indicação das ‘refeições’ que eram dadas aos prisioneiros, onde estava Deus? Onde estava? Como se encontra Deus naquela tonelada de cabelos humanos que era enviada para a Alemanha para fabricar tecidos com que se vestiam os senhores do poder? Como se encontra Deus em todos (todos) os bebés e crianças judeus que entraram pelo portão de Auschwitz diretamente para a câmara de gás?
Ouvir o silêncio ensurdecedor de Auschwitz é perguntar a cada alameda percorrida, a cada camarata despida, a cada indicação das ‘refeições’ que eram dadas aos prisioneiros, onde estava Deus?
Como se encontra Deus na esperança média de vida de três meses daqueles que escapavam ao gás e eram mandados para as camaratas? Como se encontra Deus nos cadáveres de crianças que as mães encontravam a ser comidos por ratos quando voltavam dos seus dias de trabalho forçado nos campos?
Como se encontra Deus na fábrica da morte que os crematórios nos mostram, que os números nos provam, com que as fotografias, os relatos, as memórias nos confrontam? Onde está? Onde estava?
Curiosamente – ou não – antes da entrada no campo de Auschwitz I, a exposição que nos recebe intitula-se “Pela lente da fé”. São 21 retratos de sobreviventes a este inferno na terra: judeus, polacos e ciganos que foram fotografados recentemente e cujas imagens são acompanhadas por testemunhos sobre como a fé sobreviveu dentro do campo de concentração e extermínio nazi.
Houve quem encontrasse Deus nas orações da manhã, sob cobertores que escondiam rezas murmuradas. Houve quem o vislumbrasse no sorriso fraco de encorajamento do colega do lado, que partilhava o mesmo sofrimento e falta de esperança. Houve quem conseguisse encontrá-lo no colo da mãe, também presa, pelo menos enquanto não a mataram. O Deus de qualquer uma das fés presente no campo era encontrado nas coisas mais pequenas, e que hoje nos parecem insignificantes: a capacidade de resistir mais um dia; um caldo salobro por refeição; a luz quente do sol a entrar quando parecia que o frio se instalara para sempre…
Auschwitz é uma chamada de atenção para que sejamos sempre gratos pela liberdade, pela comida na mesa, pelo conforto que sentimos. É um apelo a que sorriamos mais uns para os outros, a que estejamos mais uns com os outros, a que gostemos mais uns dos outros, a que saibamos amar-nos mais uns aos outros. É prova de que podemos encontrar Deus mesmo quando nada do que vivemos faz sentido ou nos faz sorrir.
Porque no dia em que nos esqueçamos de tudo isto que Auschwitz nos pede e nos ensina, a Síria, o Iraque, o Mediterrâneo, o Chile e Moçambique poderão ser aqui e não a milhares de quilómetros.
E então não haverá distância que nos salve da nossa própria (des)humanidade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.