Há poucas coisas mais bárbaras do que a vingança. E é por isso que, há mais de dois mil anos, foram revolucionárias as palavras que atribuímos ao Sermão da Montanha feito por Jesus Cristo. “Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas”.
Quando todos se embriagam na cegueira vingativa dos banhos de sangue, há uma enorme coragem em recordar a importância de travar essa vertigem de ódio. As palavras de Jesus são sobre essa coragem. Aquela que não se alimenta da destruição do outro, mas do esforço que torna possível um convívio que parece insuportável.
Há grandeza na capacidade de ultrapassar o que parece imperdoável para construir a paz. Mas há sobretudo uma enorme lucidez. É uma loucura acreditar que uma violência é a melhor forma de responder a outra violência. Esse é um caminho que, no limite, nos leva à aniquilação total.
Há grandeza na capacidade de ultrapassar o que parece imperdoável para construir a paz.
Mais de dois mil anos depois, é precisa a mesma coragem para apelar à paz. A forma como as declarações do secretário-geral da ONU, António Guterres, foram recebidas é bem reveladora disso. Aquele que apela a que, mesmo na guerra, se respeitem as regras, e que recorda que uma vingança é apenas uma porta aberta para uma retaliação futura, viu parte do mundo apontá-lo como um traidor.
Não pode ser uma traição lembrar que as vidas pesam (ou devem pesar) todas o mesmo, independentemente da cor, do credo, da idade ou do género. Não é, seguramente, um desrespeito por quem sofre procurar vias de resolução que impeçam que o sofrimento se perpetue de vingança em vingança.
As bombas caem, uma após outra, sobre Gaza. É lá que estão os reféns israelitas, sujeitos a ficar debaixo dos escombros provocados por quem os devia salvar. É lá que estão crianças como a rapariga palestiniana que vi num vídeo, reconhecendo a mãe morta e chorando a morte de todos os familiares que lhe dizem ser mártires. “Eu não quero mártires”, grita a menina, num desespero que nos tira o ar.
É lá que estão crianças como a rapariga palestiniana que vi num vídeo, reconhecendo a mãe morta e chorando a morte de todos os familiares que lhe dizem ser mártires.
“Eu não quero mártires”, grita a menina, num desespero que nos tira o ar.
Ninguém deve querer mártires. E muito menos os deviam querer aqueles que foram mais martirizados. Os judeus foram (e são) dos povos mais massacrados do mundo. Habituaram-se ao medo e à fuga e a sua tragédia mancha-nos de vergonha. Mas é talvez por saber como foram perseguidos e mortos que mais choca a forma como o Estado que foi construído para lhes servir de refúgio parece agora ser conduzido por quem sonha mais com a vingança do que com a paz.
É normal e desejável que se castigue o crime. É normal e desejável que se combata o terrorismo. Dar a outra face não significa perdoar tudo, significa simplesmente reconhecer a humanidade do outro e entender que estamos condenados a viver em conjunto. E não se vive em conjunto sem superar a violência com a força da razão, construindo caminhos que ajudem a sair da espiral da guerra e da morte.
Olho por olho, dente por dente, acabaremos cegos e desdentados.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.