Olhar para o dedo

Uma coisa parece certa: não é possível derrotar os que nos ameaçam sem compreender as razões de quem os apoia. E às vezes essa vitória implica pactuar com o próprio diabo – pois nele votaram pessoas que vivem ao nosso lado.

Um ditado chinês com raízes budistas diz algo como: “Quando o sábio aponta para a lua, o tolo olha para o dedo”. A interpretação mais comum é a de que o dedo representa a linguagem e a lua a verdade. O dedo pode mostrar a verdade, mas não se confunde com ela. Importa por isso ver para além do dedo, olhar para cima e ver a lua. O que é também uma forma de dizer que encontrar a verdade impõe que se enxergue para além do acessório. Outras interpretações serão certamente possíveis; porém, a minha incurável preguiça – e a oportunidade de usar um ditado chinês para falar de política – levam-me a ficar por aqui.

Nos últimos anos, a eleição de Trump e Bolsonaro para a presidência dos respetivos países aliada à ascensão, ou consolidação, de partidos e movimentos pouco recomendáveis – em Espanha (VOX) ou o CHEGA em Portugal, por exemplo – deixaram até os habitualmente pouco interessados nestes assuntos em transe. De outras paragens, como a Hungria, e em certa medida da Polónia, chegaram notícias difíceis de ignorar – sobretudo porque no caso daquele país se estabeleceu um verdadeiro regime de governo por decreto.

Fui lendo e escutando o que neste período se escreveu e disse acerca destas personagens e partidos. E com particular interesse o que a comunicação social e os ilustres que nela pontificam afirmaram nestas semanas que precedem as eleições americanas. Desta experiência resultou uma convicção: a de que muita gente parece continuar a olhar para o proverbial dedo, descurando a lua. Discutem a forma do dedo, a flexibilidade e comprimento do dedo, quantas falangetas tem, que nome deve ser dado ao dedo, mas pouco parece interessar para onde aponta.

Quando a senhora Clinton – detentora de uma questionável reputação – perdeu para Trump – um homem improvável alcandorado a uma posição com demasiado poder –, houve uma generalizada estupefação sobre como foi possível. A própria candidata vencida escreveu um livro a explicar o que acontecera. Mas rapidamente a surpresa e o interesse se centraram nos desmandos de Trump, nas suas incoerências, mentiras e completa falta de decoro.

Esta gente – e nela incluo o nosso aventureiro doméstico – não surgiu do nada. Soube identificar os descontentamentos e ressentimentos, velhos e novos, presentes um pouco por todo o tecido social. Aproveitou a raiva, o desespero, a frustração e, em alguns casos, a desesperança, acumulada em largas parcelas da população.

Algo de semelhante sucedeu no Brasil. Um oficial menor e descredibilizado do exército, com posições públicas quanto aos costumes a roçar o medieval, uma ignorância dolorosa quanto aos assuntos públicos de um país pobríssimo e profundamente corrupto e comportamentos públicos a oscilar entre a bufonaria e a afronta ao bom senso acabou sentado no Planalto. A história repetiu-se. A taxinomia do dedo voltou a ocupar o tempo de antena e as colunas dos jornais, mas pouco ou nenhum foi gasto a investigar a causa da adesão popular ao eleito.

É possível que em ambos os países dezenas de milhões de pessoas tenham sofrido de insanidade temporária? É. Mas se é possível, é pouco provável. E menos ainda crível.

Esta gente – e nela incluo o nosso aventureiro doméstico – não surgiu do nada. Soube identificar os descontentamentos e ressentimentos, velhos e novos, presentes um pouco por todo o tecido social. Aproveitou a raiva, o desespero, a frustração e, em alguns casos, a desesperança, acumulada em largas parcelas da população. Estudou com cuidado a quem deveria falar e de quê: aos milhões de desempregados americanos Trump prometeu trazer as fábricas da China de volta para a América, enquanto garantia que os imigrantes mexicanos não ocupariam os postos de trabalho vagos através da construção de um fantasioso muro. Num país minado pela corrupção, Bolsonaro prometeu diminuir o tamanho do governo e acabar com alguns ministérios; extinguir ou privatizar dezenas de empresas estatais; terminar com saídas precárias de reclusos; tipificar a invasão de propriedade privada como terrorismo (!); reduzir a maioridade penal… e a lista continua.

Suspeito que de pouco ou nada valem os discursos indignados, as manifestações folclóricas ou a obsessão de canais televisivos normalmente circunspectos em revelar o óbvio. Até porque os denunciados não parecem importar-se com o fact checking ou a divulgação de escândalos e delitos menores. Aliás, esta oposição informal serve a pose de vitimização que frequentemente adotam e vale, sobretudo para os convertidos, como demonstração prática do discurso divisionista do “nós contra eles”, que lhes é tão caro.

Estou convencido que seria de particular utilidade perguntar a quem vota a razão por que o faz. Não sendo a insanidade coletiva uma impossibilidade, a improbabilidade da mesma deveria inquietar um jornalismo decente e convocá-lo a investigar o que leva alguém a apoiar partidos, movimentos e pessoas tão improváveis e perturbadoras.

E talvez – talvez – as respostas revelassem verdades pouco agradáveis e expusessem um sentimento generalizado de que os partidos, as personalidades e os procedimentos que durante décadas perduraram – e perduram – na vida pública são uma das principais razões do voto ou apoio, ainda que velado. E destas respostas porventura resultasse uma imagem – ainda que desfasada da realidade – de que as elites que governam não se diferenciam assim tanto, e fazem parte de um regime que privilegia sempre os mesmos, prejudicando os do costume.

Ao contrário do que se possa pensar, não interessa assim tanto se aquilo que estas pessoas e movimentos dizem ou fazem é verdadeiro e genuíno. Mas antes se tocam na corda certa de quem está desiludido, com raiva, ressentido, sem esperança, vive sem perspetivas de melhoria de vida, na miséria ou nos seus arrabaldes, ou simplesmente saturado dos habituais discursos de “língua de pau”, inconsequentes e devidamente balizados pelo politicamente correto.

Ao contrário do que se possa pensar, não interessa assim tanto se aquilo que estas pessoas e movimentos dizem ou fazem é verdadeiro e genuíno. Mas antes se tocam na corda certa de quem está desiludido, com raiva, ressentido, sem esperança, vive sem perspetivas de melhoria de vida, na miséria ou nos seus arrabaldes, ou simplesmente saturado dos habituais discursos de “língua de pau”, inconsequentes e devidamente balizados pelo politicamente correto.

É possível – e mais do que isso, é desejável – discutir de forma sensata, responsável e humana a questão da imigração. A definição de uma política global contra a secular corrupção pode ser levada a cabo com serenidade, sem necessidade de catilinárias contra a classe política – e os estafados estribilhos “são todos iguais”. E sobretudo é possível e necessário falar com verdade, seja qual for o tema e as “sensibilidades envolvidas”, e tratar as pessoas como adultas, confiando que, como qualquer adulto, serão capazes de lidar com realidades duras e por vezes muito difíceis de mudar. E estar disposto a aceitar que o resultado dessa postura pode ser o desagrado, a derrota, o insulto e a ignomínia.

Nada disto é, aliás, particularmente original. Na Áustria, na Itália ou em França, as vagas de políticos, movimentos e partidos que se aproveitaram do descontentamento social – ou de fraturas sociais – para impor uma agenda assente em valores espúrios à democracia e, em alguns casos, à própria ideia de civilização ocidental sucederam-se nas últimas décadas.

É instrutivo analisar como ali se lidou com estes fenómenos. E, ainda que possa chocar os mais sensíveis, algumas destas figuras e partidos – que principiaram por se assumir anti-regime e dessa forma capitalizar a simpatia dos descontentes e descamisados – foram paulatinamente integrados no regime, desde logo através de coligações, passando, uma vez em posições de responsabilidade, a adoptar um comportamento mais decente e consentâneo com uma certa ideia de normalidade política.

Se não é aconselhável ter a cabeça na lua, convém olhar para ela, de outro modo ficamos reduzidos à visão de campanário de um dedo e sem compreender nada. E uma coisa parece certa: não é possível derrotar os que nos ameaçam sem compreender as razões de quem os apoia. E às vezes essa vitória implica pactuar com o próprio diabo – pois nele votaram pessoas que vivem ao nosso lado.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.