«Como colaboradores de Deus, nós vos exortamos a que não recebais em vão a Sua graça. Porque Ele diz: “No tempo favorável, Eu te ouvi; no dia da Salvação, vim em teu auxílio”. Este é o tempo favorável, este é o dia da Salvação. Evitamos dar qualquer motivo de escândalo, para que o nosso ministério não seja desacreditado. Mas mostramo-nos em tudo como ministros de Deus, com grande perseverança nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nos tumultos, nas prisões, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns; pela pureza, pela sabedoria, pela paciência, pela bondade, pelo espírito de santidade, pela caridade sem fingimento; pela palavra da verdade, pelo poder de Deus; pelas armas ofensivas e defensivas da justiça; na honra e na ignomínia, na difamação e na boa fama. Somos considerados como impostores, embora verdadeiros; como desconhecidos, embora bem conhecidos; como agonizantes, embora estejamos com vida; como condenados, mas livres da morte; como tristes, mas sempre alegres; como pobres, mas enriquecendo a muitos; como não tendo nada, mas possuindo tudo» (2 Cor 6, 1-10)
Olha bem para o (con)texto
Esta passagem da Escritura, que, sendo de S. Paulo aos Coríntios, é Palavra de Deus, dá-nos um óptimo lema para estes tempos de quarentena e, de modo particular, para este dia da Paixão do Senhor: este é o tempo favorável, este é o dia da Salvação. Vivemos um tempo novo, difícil, repleto de cruz – desta pandemia àquela onde morreu o Redentor; talvez nos seja difícil perceber como pode, afinal, ser este um tempo favorável. Em resposta às nossas dúvidas, S. Paulo parece ser muito claro: «mostramo-nos em tudo como ministros de Deus, com grande perseverança nas tribulações». Teremos sempre a tentação de confundir o tempo favorável com o tempo agradável; no entanto, no tempo favorável, o Senhor ouviu-nos; no dia da Salvação, veio em nosso auxílio. Para que quereríamos nós o Seu auxílio e que nos ouvisse, se estivéssemos num tempo agradável e pacífico? Este, que é o tempo das tribulações… é este o tempo favorável; e não há outro!
«Somos considerados (…) como nada tendo, mas possuindo tudo».
Recordo-me de, há uns anos, ouvir da boca de uma religiosa que existem dois caminhos para Deus: aquele de quem nada tem e percebe ter quanto baste – Deus; e aquele de quem tem tudo, nada lhe bastando, porque falta o essencial – Deus. Neste texto – e de forma tão adequada aos nossos dias – Paulo convida-nos a caminhar o primeiro itinerário: «Somos considerados (…) como nada tendo, mas possuindo tudo». Mais – é por este dia que «somos considerados (…) como condenados, mas livres da morte»! Assim, embora sejam certas e evidentes tantas feridas e cruzes do nosso mundo, é este o tempo favorável (o Senhor nos ouvirá!), é este o dia da Salvação (Ele virá em nosso auxílio!); não porque acabem as guerras e as pandemias, mas porque, diante do limite do nosso nada e da nossa impotência, podemos finalmente caminhar para Deus.
E de que modo nos mostra Cristo que nos ouviu? Como escolheu o Omnipotente vir em nosso auxílio? Hoje – talvez realmente numa só alma – evocamos o Nome d’Aquele que é Forte para nos resgatar. Onde está Ele? Nas palavras do Cardeal Joseph Ratzinger, «ao lado dos inocentes e dos que sofrem». Na Sua Cruz e, misteriosamente, com a Sua dor, Cristo ouve-nos… Cristo acorre em nosso auxílio – é este, então, realmente, o tempo favorável, o dia da Salvação.
Talvez já tenhamos ouvido este slogan nos últimos dias, quiçá associado a algum propósito: “este é o tempo favorável – reza em família”; “este é o tempo favorável – perdoa um amigo”. E isso está muito bem: a Palavra de Deus assenta sempre em terra firme; no entanto, convém não confundir a Palavra com a terra. A Epístola de Paulo não nos diz que este é o tempo favorável porque teremos tempo para sermos perfeitos e melhorarmos a nossa vida; este é o tempo favorável porque este é o dia da Salvação. Não se trata de fazer esta ou aquela coisa, esta ou aquela auto-conversão… mas a total e plena conversão do nosso coração a Deus. E, diante do Deus Cruficidado, escusado será dizer: a Salvação – de que agora é tempo – não parte nunca de nós, mas d’Ele.
Cristo acorre em nosso auxílio – é este, então, realmente, o tempo favorável, o dia da Salvação.
Olha bem para o texto (original)
Depois de uma breve passagem pelo contexto deste fabuloso lema – Este é o tempo favorável! –, olhemos o texto propriamente dito… no original, isto é, no grego. Foquemo-nos numa única palavra, que, sendo Palavra de Deus, nos dará “pano para mangas”!
Deparei-me há uns dias com esta palavra, que, infelizmente, não aparece traduzida nesta versão, que é a versão litúrgica. A palavra é ἰδοὺ (idu). Embora apareça em algumas traduções como advérbio (“Eis o tempo favorável”) – que é, realmente, o seu significado tardio – vale a pena olharmos para o seu sentido original; e, na sua forma mais pura, ἰδοῦ (idu) é o imperativo aoristo segundo da voz média, na segunda pessoa do singular do verbo ὀράω (oráô)… e isto, embora não pareça, é já dizer, pelo menos, cinco coisas.
Primeiro, o verbo ὀράω (oráô) poderia ser traduzido como “olhar”, “observar” ou “ter olhos”, “ser capaz de ver”, “descobrir” ou “ganhar certeza”. É disto que estamos a falar: antes de nos anunciar que este é o tempo favorável, S. Paulo usa este verbo.
Segundo, o verbo está no imperativo! O Autor Sagrado não está a dizer simplesmente que seria bom se olhássemos, ou que podemos olhar… está a dar-nos essa ordem! Neste tempo concreto, neste dia da Salvação, por muito que nos sintamos chocados ou nos consideremos indignos, a Palavra de Deus não dá uma mera sugestão nem faz uma simples constatação: dá-nos uma ordem, e clara – olha para o Crucificado, vê a Sua morte… este é o tempo favorável!
Terceiro, é o imperativo médio. Tal como em português temos a voz activa (que expressa o fazer uma acção – “olhar”) e a voz passiva (que expressa o sofrer uma acção – “ser olhado”), em grego existe a voz média, que expressa o fazer uma acção com interesse ou gosto, ou então fazer uma acção que recai sobre o próprio sujeito, isto é “olhar com interesse” ou “olhar-se”. A ordem de Paulo – que, repito até à exaustão, é Palavra de Deus – é que olhemos bem e com interesse, ou então que olhemos bem para nós mesmos e vejamos… E, como fora de nós veremos Cristo cruficidado, no nosso interior veremos outras tantas cruzes. O tempo pode não ser agradável ou fácil; talvez seja até quase insuportável… mas, se podemos confiar na Palavra de Deus (e podemos!), é com gosto e com interesse que constataremos – este é o dia da Salvação!
Quarto, é o imperativo singular. Diante do peso da Cruz, já não há multidões; os próprios discípulos dispersam. Assim, não é um apelo às massas, nem e do qual nos possamos desresponsabilizar. Não: é um apelo claro e individual a cada um de nós para que descubramos e ganhemos a certeza de que este é o tempo favorável. É uma ordem dirigida ao próprio leitor: Vê bem a Cruz e olha bem para ti – este é o tempo favorável! Este é o dia da Salvação!
Talvez este imperativo se torne especialmente grave no dia de hoje. Afinal, quem pode encarar com esperança o desespero de ver o seu Deus morrer? Isso traz-nos ao quinto e último ponto: trata-se do imperativo aoristo. Embora no modo indicativo o tempo “aoristo” corresponda ao nosso pretérito perfeito, nos outros modos o seu significado é algo misterioso. Muitas gramáticas traduzirão o imperativo aoristo como exactamente igual ao imperativo presente; no entanto, significando “aoristo”, à letra, “sem horizonte (temporal)”, podemos ler no imperativo aoristo uma conotação algo particular: é uma ordem dada, a ser cumprida independentemente da circunstância e do nosso tempo, mas com constância e “de uma vez”. Diante da Cruz? Sim. Diante da Morte de Deus? Sim. Isto, claro, não precisaríamos nós do aoristo para saber, porque no-lo diz o profeta Isaías: «Seca-se a erva e caem as flores, mas a Palavra do nosso Deus permanece para sempre»! (Isaías 40, 8)
Afinal, quem pode encarar com esperança o desespero de ver o seu Deus morrer?
Olha bem para ti, de uma vez por todas!
Uffa! Que grande complicação… tanta coisa numa só palavra… são estas as maravilhas da Palavra de Deus! Assim começa o capítulo da Epístola: «Como colaboradores de Deus, nós vos exortamos a que não recebais em vão a Sua graça». Qual graça? Pois bem, este tempo, que é o favorável e o único; este, que, sendo o dia da Paixão, é o dia da Salvação. O convite paulino – que é uma ordem! – chama, então, cada um de nós – não apenas hoje, mas de uma vez por todas; tanto agora como antes desta pandemia, tanto amanhã como na hora da maior angústia e até da cruz e da própria morte – a olhar para si mesmo e a ver bem: este é o tempo da favorável! Não sejamos ingénuos: não se trata de um tempo agradável, mas sim favorável.
Aliás, a Palavra de Deus não nos quer deixar confusos: é tão clara que o repete – Olha bem para ti mesmo, de uma vez por todas, e – diante de Cristo crucificado – vê: este é o tempo favorável! Vê bem e com proveito, diante do Deus Morto, agora e sempre: hoje é o dia da Salvação!
+ Ad Maiorem Dei Gloriam +
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