O que é o voto católico? Muitos referem-se ao “voto católico” como se todos os católicos votassem ou tivessem de votar na mesma proposta política. Isto é um erro. O voto católico não existe, nem deve existir enquanto voto de um grupo social preocupado com um ou dois assuntos particulares. Ainda assim, considero que podemos falar de voto católico, num outro sentido. Se quiser saber como, então continue a ler! Este artigo é para si.
A Doutrina Social da Igreja
Quando nos aproximamos de um momento eleitoral, como é o caso agora, é normal que os católicos se interroguem sobre os seus critérios de discernimento no voto. Ainda bem. Isso significa que a nossa fé é viva, e que não somos apenas “cristãos de pastelaria”, como chegou a dizer o Papa Francisco. O nosso voto deve ser exigente e a fé não é só para os momentos de liturgia ou de convívio. Ela deve iluminar também o nosso pensamento sobre a sociedade em que vivemos. E deve motivar a nossa participação na construção de uma sociedade justa e fraterna – nomeadamente, através da escolha dos nossos representantes políticos.
É frequente as conferências episcopais emitirem comunicados que nos relembram dos princípios da Doutrina Social da Igreja em leituras do momento social e político que vivemos. Este é um contributo muito valioso. Contudo, ele nunca é (ou não deveria ser) o apelo ao voto numa proposta política concreta. Porquê? Porque a própria Doutrina Social da Igreja se apresenta como um guia para interpretar a realidade e não como uma grelha para fazer determinadas escolhas complexas. Não só o Catecismo nos ensina a importância da pluralidade (§814), como o Compêndio da Doutrina Social da Igreja faz um apelo explícito à consciência de cada um na tomada deste tipo de decisões. Seria errado os católicos abdicarem da sua liberdade e responsabilidade (§163). Ao mesmo tempo, os princípios que a Doutrina apresenta devem ser considerados na sua “unidade, conexão e articulação”. (§162)
Estes princípios são sobejamente conhecidos: a dignidade humana, o bem comum, o destino universal dos bens, a subsidiariedade, a participação, a solidariedade. Vale a pena ler o que a Igreja tem a dizer sobre cada um deles! No texto, fica claro que todos os princípios derivam desta visão da dignidade da pessoa humana, como una, livre e aberta à transcendência, mas, para lá disso, não devemos ocultar ou impor a preferência por um princípio ou assunto em detrimento de outro. Isso seria trair a exigência do pensamento social da Igreja.
Além disso, a Doutrina apresenta-se como viva e aberta ao diálogo com as ciências e as várias áreas do conhecimento. Por alguma razão, a Igreja fez o percurso de deixar de encarar a usura (i.e., juros) como uma ofensa moral (caso contrário, a Igreja não poderia usar os bancos de hoje…); de aceitar e promover a democracia depois do Concílio Vaticano II e, mais recentemente, já no século XXI, de passar a condenar absolutamente a pena de morte.
A fasquia do voto católico é, por isso, muito alta, e as propostas políticas que encontramos parecem sempre deixar muito a desejar. Mas a verdade é esta: não vai haver partidos políticos com que concordemos a 100%.
Diante desta complexidade, de um conjunto de princípios diversos, de uma abertura à realidade complexa do mundo, e da evolução da própria doutrina, a linha derradeira com que se deve medir a nossa reflexão é o Evangelho. Isto podemos ler também no texto do Compêndio (§72).
As escolhas políticas
A fasquia do voto católico é, por isso, muito alta, e as propostas políticas que encontramos parecem sempre deixar muito a desejar. Mas a verdade é esta: não vai haver partidos políticos com que concordemos a 100%. E isto não vale só para os católicos que vão às urnas. Aqui é importante não ser ingénuo: o voto não é um objeto de consumo (“gosto, compro” / “não gosto, não compro”), é um resultado de um processo de participação política. E, portanto, se eu não estou satisfeito com as propostas que existem posso sempre juntar-me a um desses partidos, com que mais me identifique, e tentar propor medidas ou orientações novas. Os próprios partidos não são monólitos: são lugares de disputa interna onde existem várias correntes, e isso é algo positivo.
Mas se eu agora vou só ser um eleitor, como é o caso da maioria de nós, então, ao fazer o meu discernimento, é importante tentar acertar num equilíbrio entre dois tipos de questões:
– macro, ou seja a visão geral de sociedade que cada partido tem (e.g., mais baseada no coletivo ou mais baseada no indivíduo, mais focado público ou no privado), e
– micro, ou seja, medidas concretas que suscitam a minha preocupação ou respondem aos meus anseios, de acordo com a minha reflexão informada.
Medir em simultâneo o peso de visões gerais e medidas particulares é difícil, sobretudo se considerarmos que a Doutrina Social da Igreja estabelece certas proibições absolutas, que podem dizer respeito às questões micro e macro. Sobre as questões ditas “macro”, a Doutrina Social da Igreja explicitamente rejeita o comunismo, o fascismo (§92) e o ultra-liberalismo (§91). O que é difícil por vezes perceber é se os partidos que se apresentam a eleições seguem de facto estas correntes. Obviamente, por razões históricas, em Portugal nenhum partido se apresentará como fascista ou “ultra-liberal”. Mas isso não impede um partido de sê-lo. Como sabemos, por vezes os nomes enganam, também em casos não extremos: por exemplo, os sociais-democratas em Portugal não estão na mesma família política europeia que os sociais-democratas de outros países. Haveria outros exemplos mais.
É preciso, portanto estar atento ao que cada partido propõe. O que nos leva então às questões micro. Nesse foro, a aplicação das tais proibições absolutas já se torna mais complicada. Indo ao exemplo mais óbvio, a Igreja proíbe liminarmente o aborto e a eutanásia. Mas proíbe liminarmente outras coisas. Como vimos, agora proíbe a pena de morte, mas também a tortura (§404) e a produção de armas nucleares (§509). E, no entanto, mesmo tendo sido Portugal acusado de práticas de tortura nas suas prisões muito recentemente, e mesmo estando nós numa escalada de armamento nuclear a nível mundial, muito poucas pessoas trazem estas temas para o debate do “voto católico”. O que fazer?
A solução não é propriamente procurar o “mal menor”, mas antes procurar o bem maior, reconhecendo que o ser humano é falível e a política implicará sempre diálogo, escuta, negociação, em busca do bem comum. Aquilo que podemos julgar inaceitável como princípio, na realidade (que é sempre maior que as ideias!) pode-nos conduzir a leis que acautelam, mitigam, ou respondem a esse mal. E isso não é despiciendo.
A solução não é propriamente procurar o “mal menor”, mas antes procurar o bem maior, reconhecendo que o ser humano é falível e a política implicará sempre diálogo, escuta, negociação, em busca do bem comum.
Muito se aconselha nestes tempos a que se leiam os programas eleitorais. Mas honestamente a maioria de nós não tem tempo para lê-los por inteiro. E não faz mal. Os programas podem ainda assim cumprir a sua missão: eles são certamente importantes porque estabelecem um compromisso com os eleitores, responsabilizam os eleitos e mostram, de certo modo, seriedade e amor pelo país. É uma vantagem para nós, eleitores, podermos ver o nível de detalhe com que são preparados, as medidas que mais importam para nós e fazer análises comparativas. De igual modo, é fundamental saber quem são os candidatos, se são competentes e comprometidos com o bem comum. Tendo a atenção para não pessoalizar a política em demasia, é vital sabermos quem são os nossos representantes, se se alinham com os nossos valores e estão disponíveis para dialogar, durante o seu mandato, connosco e com as nossas comunidades. Não podemos aceitar partidos que não apresentam programa nem listas de candidatos. Isso seria dar um cheque em branco a quem terá demasiadas responsabilidades. Seria esvaziar o nosso discernimento.
Tudo isto deve pesar no voto católico, que se caracteriza, como espero ter-vos convencido, como um voto discernido, ponderado e confiante.
Confiança
Porquê confiante? A confiança do voto católico é uma característica essencial. Não se trata de confiança numa realidade terrena e muito menos em figuras messiânicas. Mas sim, sobretudo, em Deus. Só a confiança em Deus nos permite amar os nossos adversários políticos, para não dizer até os nossos inimigos. Só essa confiança nos permite discernir o que contribui para o bem comum e respeita a dignidade de todos, mesmo daqueles com quem não concordo ou com quem não simpatizo. Esta confiança em Deus também me ajuda a abdicar de vontade de controlo total. Ao contrário de Judas, que achava que Jesus viria mudar a ordem política, também eu tenho de reconhecer que as mudanças sociais não devem ser impostas, mas propostas, pelo via do amor evangélico. Este amor evangélico também se traduz num amor cívico e político.
Por fim, esta confiança em Deus também me permite confiar no meu discernimento, em liberdade, e permite-me também confiar nos outros, o que é fundamental. A total falta de confiança nos outros corrói as instituições políticas. E sabemos que, sem instituições, não teríamos sociedade. Em tempos de extremismos, individualismos e desconfiança extrema nas instituições, este voto católico é mais importante do que nunca.
*este artigo baseia-se numa conferência dada no Centro Universitário Manuel da Nóbrega (CUMN), a 6 de maio de 2025, intitulada “A arte de votar: olhar a política a partir do pensamento social da igreja”. Obrigado ao CUMN pelo convite e a todos os que participaram e conversaram comigo neste serão! Escrevo este artigo também em memória do P. José Maria Brito, sj, que sempre incentivou a moderação, profundidade e liberdade na nossa participação na vida pública.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.