“Ah, acabou a guerra e puseram-se a fazer manteiga!”, foi o meu pensamento estremunhado ao ver escrito, na embalagem de uma clássica marca de lacticínios, “1947”. Será talvez excessivo dizer que, a partir desse momento, cada pequeno-almoço meu se tornou uma homenagem aos pequenos gestos que sustentam a paz, mas é verdade que atentar na data inscrita nessa embalagem foi suficiente para me pôr a pensar na despercebida riqueza do dia-a-dia. O que a vida tem, digamos, de pequeno-almoço: todos aqueles momentos de que só damos conta quando não acontecem. Já lá canta John Lennon, não é verdade? “Life is what happens to you while you’re busy making other plans…” Embora tenha de confessar que, por uma vez, não foi o poeta de Liverpool a minha primeira inspiração. Quem, nessa manhã de confinamento, fez os meus olhos atentarem naquela data, pela qual haviam passado distraidamente tantas vezes antes, foi Robert Walser.
Tenho andado a ler os romances do escritor suíço — sem regra e sem sistema, seguindo a intuição de que quem quer conhecer a sua vastíssima obra deve menos “debruçar-se” sobre ela do que, através dela, “passear” — e foi isso, julgo, que fez os meus olhos pararem (repararem) naquele “1947”. A literatura walseriana vive de uma particular atenção ao ínfimo, ao que se esconde à vista de todos, ao que se perde nas dobras da vida. Correndo o risco de ir contra o princípio definido pelo narrador de Jakob von Gunten – um diário — “Quando levamos grandes palavras à boca erramos sempre” —, diria que Walser me surge como uma espécie de padroeiro das coisas pequenas. (E o autor levou tão “à letra” essa missão que até escreveu uma imensidade de universos em “microgramas”, utilizando para isso um código condensado da sua autoria.)
Nestes tempos de pandemia, em que a normalidade de todos foi fortemente abalada, darmos importância ao “desimportante” de cada dia é um exercício ainda mais urgente.
Nestes tempos de pandemia, em que a normalidade de todos foi fortemente abalada, darmos importância ao “desimportante” de cada dia é um exercício ainda mais urgente. Mas nem sempre mais fácil. Ler os romances de Robert Walser — O Salteador, O Ajudante, Os Irmãos Tanner ou Jakob von Gunten — ensina-nos o caminho. A importância, por exemplo, de uma refeição: “Era simplesmente impossível comer peixe assado e logo a seguir ser o mais desgraçado entre os homens. Eram coisas que não iam juntas.” Ou a importância de parar para olhar, por exemplo, uma bandeira: “Seguindo a direção do vento, ora se lançava com o corpo leve num movimento arrojado e orgulhoso, ora se encolhia recatada e lassa, ora se franzia e encostava coquete ao mastro, parecendo comprazer-se com os seus movimentos graciosos.” (Citações de O Ajudante, tradução de Isabel Castro Silva.)
Por outro lado, a lição walseriana não é a de “dar importância” a nada. Esta é uma escrita realmente única, feita de uma rara, estranha leveza, que tem a graça da espontaneidade e a fina sabedoria de quem acredita no poder do relance. Páginas voadoras cumprindo o que talvez se possa chamar uma “arte poética do passeio”. Em tempos de confinamento, estas histórias permitem-nos viajar sem sair de casa; não apenas no sentido geral em que sempre “viajamos” quando lemos literatura digna desse nome, mas no sentido especial de uma literatura que nos “manda passear”. Os vários narradores walserianos (vozes de um contínuo “eu-livro”, para usar a expressão do autor) fazem questão em passar por cima das coisas para melhor as conhecerem. O que encanta em Walser é como esse “passar por cima” casa tão bem com aquele “fazer questão”. Diz Simon em Os Irmãos Tanner: “Tantas coisas se perdem quando primeiro as examinamos vagarosamente.” E diz Jakob von Gunten no romance com o seu nome: “Minto noutros lugares, mas não aqui, à minha frente.” Em Walser, tudo é jogo e, ao mesmo tempo, tudo é verdade. Belo mistério! (Vamos a ver e, se calhar, com esta exclamaçãozita, já me estatelei em pleno texto…)
Em Quase nada: Defesa e interpretação de Robert Walser — um pequeno grande livro acabado de sair —, Pedro Sobrado escreve que Walser e a sua obra se nos apresentam “como uma esfinge sem segredo”, juntando a essa imagem a ideia de enigma definida por Giorgio Agamben: “A essência do enigma está no facto de a promessa de mistério que ele gera ser sempre necessariamente gorada, uma vez que a solução consiste precisamente em mostrar que o enigma não era mais do que aparência.”
Pois talvez, talvez. A não ser (permitam-me a ousadia) que se leia Walser com olhos mais walserianos. Isto é, nem buscando “soluções” nem descartando “aparências”. Antes aceitando que tudo é, ao mesmo tempo, sério de morte e uma brincadeira infinita, que tudo pode ser exatamente como se diz e maravilhosamente intraduzível. Mas talvez nada disto importe, afinal de contas, que a alegria de ler estas histórias tem muito a ver com certa delicadeza que confunde. (“Amo tudo o que não pode ser, que tem de ficar dentro de mim”, escreve Jackob von Gunten no seu diário.) Fechamos um romance de Walser e estamos melhor, sim — e também com muito menos certezas! (Mas o melhor é fechar aqui o texto, antes que estas exclamações me façam espalhar ao comprido outra vez…) Já lá diz o inesquecível aluno do Instituto Benjamenta: “É bem assim, não, nem sempre é bem assim, o Senhor É Bem Assim havia de marchar daqui para fora.”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.