O regresso ao essencial

Voltar ao essencial é voltar a essa unidade, essa inteireza que nos torna irmãos, tanto na mesa partilhada como na vida de todos os dias. Esse é o nosso caminho de conversão, na procura e na luta pelo bem e pela justiça.

A frase não é nova e tem ar de batida. Ouvimo-la nos apelos a uma vida mais simples, mais respeitadora dos recursos da criação e mais justa na relação com os outros. Temo-la certamente repetido e interiorizado no contexto sinodal que vivemos, onde somos chamados a redescobrir o essencial no nosso viver em Igreja a fé em Cristo e de anunciar aos outros a novidade e a alegria cristãs. Ela regressa sempre que falamos na reconciliação entre os cristãos, em particular nesta semana em que todos os discípulos e discípulas de Cristo, batizados em seu nome, são chamados a redescobrir a urgência da unidade e o quanto o mundo precisa do testemunho de homens e mulheres reconciliados, portadores de uma mensagem credível de esperança e de paz.

Este introito vem a propósito do tema escolhido para a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos: “Aprendei a fazer o bem, procurai o que é justo”. Aparentemente inócuo e até passível de uma quase leitura em chave moralista, o tema ganha, contudo, uma outra força quando integrado no capítulo 1 do livro do profeta Isaías. Com efeito, o excerto escolhido (Is. 1, 12-18) começa de uma forma que nos pode deixar perplexos, pois Iahweh expressa, pela boca do profeta, o profundo desprezo pelas liturgias celebradas no templo de Jerusalém: “Quando me viestes prestar culto, quem reclamou de vós semelhantes dons, ao pisardes o meu santuário? Não me ofereçais mais dons inúteis: o incenso é-me abominável; as celebrações lunares, os sábados, as reuniões de culto, as festas e as solenidades são-me insuportáveis. Abomino as vossas celebrações lunares, e as vossas festas; estou cansado delas, não as suporto mais. Quando levantais as vossas mãos, afasto de vós os meus olhos; podeis multiplicar as vossas preces, que Eu não as atendo.” O texto continua apelando à necessidade de conversão daqueles que se apresentavam diante de Deus com as mãos “cheias de sangue”, promovendo as injustiças, espezinhando os mais pobres e frágeis, personificados, também aqui, pelas figuras do órfão e da viúva. Deus oferece o seu perdão, apela à conversão, a uma vida justa, na busca do bem e na luta contra toda a forma de opressão.

Esse aprender o bem e procurar a justiça ganham, em Jesus, uma universalidade que obriga a quebrar barreiras e muros, a eliminar todas as formas de segregação e de desrespeito pela dignidade fundamental de todos os homens e mulheres criados à imagem e semelhança de Deus.

Ao lermos este texto, facilmente nos vêm à memória as próprias palavras duras de Jesus contra os fariseus (Mt. 15, 8-9), denunciando um ritualismo que não correspondia a um sentimento interior. Na linha dos anteriores profetas, mas agora com uma outra autoridade, confirmada pelo poder dos seus milagres, Jesus continua a criticar e a condenar como inútil e perversa toda a forma de religião autocentrada, desligada de uma vida interior profunda e de uma compaixão que impele ao encontro do outro, ao fazer-se próximo. Esse aprender o bem e procurar a justiça ganham, em Jesus, uma universalidade que obriga a quebrar barreiras e muros, a eliminar todas as formas de segregação e de desrespeito pela dignidade fundamental de todos os homens e mulheres criados à imagem e semelhança de Deus. Publicanos, prostitutas, pastores e magos, cobradores de impostos, humildes pescadores, leprosos e paralíticos, todos os que possuíam qualquer deficiência, a todos se dirige, olha com misericórdia, faz reerguer do chão, leva à experiência do amor de Deus que não condena, mas antes liberta e reconstrói.

A reação contra os fariseus e as autoridades religiosas da época lêem-se pela perceção profunda de que a Lei fora dada como caminho de liberdade, de vida plena de um povo que Deus chamara da escravidão do Egipto para a liberdade. Ela não devia ser um jugo, mas um instrumento para um mundo mais justo e fraterno. Jesus não vem, como há muito relembrou o irmão Roger de Taizé, para propor uma religião, mas sim uma comunhão. Certo que a expansão do anúncio cristão levou à criação, aliás necessária, de estruturas, formas de organização, numa grande pluralidade de soluções. Mas estas servem o desafio da comunhão, fundada em Cristo, que no seu corpo reconciliou a Humanidade com Deus, por dom gratuito da sua misericórdia, para que entre todos os filhos de Deus, seus irmãos e irmãs, não imperasse outro mandamento senão o do amor. Assim o recordava na Ceia tomada antes da Paixão, onde lava os pés aos discípulos e a Si mesmo se dá no pão e no vinho partilhados.

Os Evangelhos estão cheios das parábolas de Jesus que recordam a urgência de nos fazermos próximo, de irmos ao encontro dos que mais sofrem, de nos empenharmos na construção do mundo. O Evangelho lido na celebração proposta para o oitavário, retirado do capítulo 25 de S. Mateus, é taxativo ao ligar o seguimento de Cristo ao empenho ativo no socorro aos que mais sofrem: tive fome e destes-me de comer, tive sede, estava nu, preso, só… Jesus faz-se presente nos pequeninos, reconhece-se neles, e faz do amor vivido, da vida dada nos pequenos gestos, todos os dias, o lugar por excelência do encontro com Ele.

O grupo que propôs este tema teve origem num conjunto de cristãos oriundos de várias Igrejas do Minesota, nos Estados Unidos. Um território marcado pela memória dos conflitos raciais, da discriminação dos povos indígenas e afroamericanos, ainda recentemente atualizada no drama vivido pelo jovem George Floyd às mãos das forças policiais. Sabemos o infeliz desfecho. Muita desta discriminação atravessa as sociedades, mas também as Igrejas. Podíamos, aliás, multiplicá-la face à titubeante política de acolhimento dos refugiados e migrantes, dos muitos que buscam melhores condições de vida nas sociedades do hemisfério norte, mais ricas, não raro às custas da exploração dos países mais pobres. Os cristãos do Minesota perceberam como buscar a unidade exige semear a reconciliação onde subsistem os muros da divisão e da separação. Sarar as feridas, reconstruir, abrir caminhos novos de reconciliação.

E este é um caminho desde já possível para o nosso testemunho conjunto, para vivermos uma unidade entendida como comunhão na diversidade, para semearmos a reconciliação, para anunciarmos de forma credível e entendível a boa nova trazida por Jesus.

É aqui que o tema da semana e o próprio Jesus nos convidam a encontrar o essencial: no mandamento novo vivido concreta e ativamente. E este é um caminho desde já possível para o nosso testemunho conjunto, para vivermos uma unidade entendida como comunhão na diversidade, para semearmos a reconciliação, para anunciarmos de forma credível e entendível a boa nova trazida por Jesus. Se é muito o que nos une, mesmo o que ainda precisa de ser amadurecido e dialogado não nos pode impedir de viver desde já este compromisso pelo bem e pela justiça.

Este é também o caminho para o abandono da idolatria, de formas autorreferenciadas do religioso. Estamos já longe das antigas dicotomias ou oposições entre ação e contemplação. Na liturgia, trazemos e celebramos o mundo na sua inteireza e plenitude, a vida com as suas alegria e tristezas, os seus sucessos e dores. Sabemos como é na oração, no silêncio, mas também no mistério de vida dada de Jesus celebrado e renovado em comunidade, que a esperança se alimenta e o caminho se torna de novo possível. Precisamos também desse dom que afirma que o amor e a vida são mais fortes do que a injustiça, a violência e tudo o que espezinha e destrói a Humanidade e esta casa comum que habitamos.

Voltar ao essencial é voltar a essa unidade, essa inteireza que nos torna irmãos, tanto na mesa partilhada como na vida de todos os dias. Esse é o nosso caminho de conversão, na procura e na luta pelo bem e pela justiça.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.