“O que queres ser quando fores grande?” Esta pergunta abunda nas minhas memórias de infância. Quando os meus pais, mas sobretudo os meus avós, me apresentavam a alguém que conheciam, era uma pergunta que surgia quase sempre.
As respostas variavam consoante os anos: desde o sonho de ser veterinário, a ser mergulhador, passando por arqueólogo e terminando em “trabalhar com computadores”. Não estou, sem dúvida, sozinho. Tal como eu, muitas crianças de qualquer geração se recordam como queriam ser polícias, bombeiros, médicos, futebolistas ou simplesmente super-heróis.
A pequena Agnes, no filme Gru – O Maldisposto, tem um grito carismático: “que fofinho”, diz ela muitas vezes sobre o seu unicórnio. Esta era também uma pergunta “fofinha” dos adultos. Curiosamente, está também bastante vívido na minha memória como esta pergunta se transformava, após a minha resposta, num sorriso dos adultos, num misto entre enternecimento e paternalismo. O embate do sonho puro com a condescendência adulta fazia-me sentir que era apenas isso, um sonho. E isso sempre foi doloroso para mim. Não tenho qualquer dúvida de que era apenas uma magnanimidade, sem maldade, baseada na experiência de muitos sonhos que ficaram apenas no éter.
No entanto, tal como em tantos pequenos pormenores, decidi conscientemente não replicar essa condescendência na relação com as crianças, sobretudo com os meus filhos. Acho que a matéria da qual se fazem os sonhos é quase sagrada, dando aos adultos a possibilidade de mergulhar na mais profunda visão da criança.
Após algumas conversas com o meu filho mais velho, de 7 anos, respondendo às suas interrogações do “porque tem quase tudo que ser pago?” e “como podem as pessoas que não têm dinheiro ter uma casa, ou comprar comida?”…, ele olhou para mim e disse: “Papá, se eu fosse presidente, fazia com que tudo fosse grátis, para todas as pessoas poderem ter casa, comida e as coisas que gostassem.”
Podia ter respondido com um sorriso e uma resposta condescendente, do tipo: “era bom, filho!” ou “tens razão!”. Mas não… Expliquei como nasceu o dinheiro, porque é que das trocas diretas passámos a usar uma moeda, como é que, mesmo tendo problemas, foi a maneira que encontrámos para ajudar a fazer trocas em casos difíceis. “Imagina que eu tinha uma vaca e tu tinhas galinhas. Uma vaca valeria muitas galinhas, mas se calhar eu só queria uma, e tu só precisavas de um pedaço de uma vaca. Mas voltando à tua ideia… porque gostavas de fazer isso? E agora que sabes com chegamos até aqui, como achas que poderíamos melhorar?”
Mais do que uma “aula” de história, o que quis foi aprofundar o “porquê”. Quais eram os problemas que o meu filho via, o que o incomodava, e agora que percebia melhor como tínhamos chegamos aqui, como se podia continuar o sonho dele, torná-lo realidade, embora com as limitações do mundo. No fundo, sair das perguntas e respostas meramente “fofinhas” e procurar propósitos de vida.
Nesta fase, a pergunta provável do leitor talvez seja: “mas será realmente algo importante o suficiente para fazer caso disso?”
Eu cresci a procurar o (meu) sentido da vida. Procurei em conversas, em livros, na fé e a acreditar que iria ter um “momento eureka”. O momento em que algo tão evidente surgiria, e no qual eu me ajoelharia sorrindo, a pensar, como é que não percebi isto antes. Esperava para mim o que costuma acontecer no fim de um bom filme, em que o “twist” final torna tudo antes óbvio à luz duma nova interpretação, tão evidente que não se percebe como não foi sempre óbvia. Esse momento iria definir tudo: o que queria fazer na vida, o trabalho, cada decisão e opção.
Frustrado com o passar dos anos, durante a minha adolescência sentia que falhava por não ter tido (ainda) este momento. Poderei estar agora a fazer uma extrapolação de dimensões épicas, mas quando vejo a incerteza e indecisão dos alunos do 9º, 12º revejo essa dor e essa busca incerta.
O que tem isto a ver com os sonhos de criança?
Percebi que este significado é um caminho e não um fim. O sentido vai sendo tão construído quanto descoberto, e vem de dentro, quando sempre o procurei fora. O mais relevante não é “o que quero ser”, mas as fundações disso, o “porque” quero ser.
No meu caso entrei na universidade no curso de Engenharia Informática, a primeira opção, na cidade onde vivia. Num curso relacionado com tecnologia, como gostava, numa “boa universidade”. E se tudo parecia ser uma espécie de conto de fadas do nerd, no entanto, hesitava. Questionava a escolha. Na altura, participava em campos de férias no verão, e isso parecia ser o que queria fazer para a vida. Sentia que ajudava mais a melhorar o mundo em 10 dias por ano, com aquelas crianças, do que nos outros 355. Parecia um trabalho fútil. Lentamente comecei a perceber como podia fazer pontes. Podia não fazer um programa que salvasse o mundo ao carregar num botão como num filme, mas podia mudar tanta coisa… – isto em si daria um artigo -, mas o importante é que foi ao perceber o porquê de base que percebi como ele se podia transportar duma maneira inesperada e divertida para o que fazia.
Um sentido “porquê” pode manifestar-se em imensas maneiras de concretizar o “como” e o “o quê”. Por vezes ficamos cegos pelas manifestações concretas. Um exemplo prático? Não é preciso ser médico ou enfermeiro para “ajudar” pessoas. Nem todos os que escolheram ser, o fizeram por esse motivo.
Gosto muito de uma parte da vida de Einstein que exemplifica bem o princípio que defendo. Einstein terminou o curso e não conseguiu nenhum trabalho na área que pretendia durante dois anos. Acabou por mudar de cidade para Bern, propor-se e ser aceite para trabalhar num escritório de validação de patentes. Parecia longe da carreira em Física, que tanto o fascinava, e perto de desistir…. Contudo, foi nesse trabalho repetitivo que se criou o espaço para refletir e desenvolver as teorias que abanam o mundo da Física. O sentido dele era claro.
Quero ajudar os meus filhos a fazer esse caminho consciente desde pequenos, para que saibam que o mais puro sonho que têm não é uma infantilidade de criança, é uma visão profunda do mundo. Esta irá lentamente juntar-se às outras, com o passar dos anos, até se formar um sentido sólido.
Mais do que isso, ousei com a minha mulher e mãe deles, a Maria, propor-lhes logo ao nascimento uma pequena parte desse significado. Cada nome que escolhemos tem o significado e/ou origem nesta proposta.
Ao Guilherme, propomos que, sendo forte, seja um corajoso protetor daqueles que precisam.
Ao Simão, que escute e seja um porto de acolhimento para todos sem exceção.
Ao Benjamim que seja um farol de esperança.
A cada dia, a esse desafio somam-se os seus sonhos e visões do mundo, que nos desafiam a rever o mundo pelos seus olhos. Relembram-nos que o inconformismo do sonho e da fé podem fazer tanto pelo mundo… e por eles, ao tornar claro quem são!
No fundo, espero ajuda-los a seguir a máxima: “Porquês” guardo-os a cada dia, um dia vão fazer (um) sentido.*
* Adulteração da frase famosa de Nemo Nox
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.