Como é que se pode voltar a confiar nos padres? Devemos acreditar na Igreja? Se é assim tão grave, como é que se escondeu? Qual a segurança que nos garantem? Se é verdade que a Igreja é santa, como permite estas monstruosidades? Não será tudo isto um exagero, uma campanha contra a Igreja?
Não sei o que se passou em todas as casas, mas na minha foi assim. Depois daquela fatídica segunda-feira da apresentação do relatório, os mais incrédulos, os mais assustados foram os mais novos. Nós, chocámo-nos, indignamo-nos, revoltámo-nos, mas os nossos filhos viram toda uma muralha firme de moralidade e castidade, santa e imaculada a desabar. Viram-se ali, no lugar dos outros. E, entre mudar de canal por pudor e vergonha cada vez que era lido um relato macabro, anunciados os números, detalhados os casos e dissecado o relatório, ou deixá-los ouvir sem restrições – porque o conhecimento e a verdade é a melhor defesa – passei os dias a vacilar. Ainda assim tentei poupá-los aos piores relatos ao mesmo tempo que não lhes escondi o horror. Foi um exercício esquizofrénico e penoso entre o bom senso e a sensibilidade.
E os olhos deles arregalaram-se e fitaram-nos como se a fé de cada um estivesse ali suspensa à espera de uma resposta. “Digam lá, vocês que nos levaram para aqui, que nos guiam como família católica, o que têm a dizer dobre isto?”, era o desafio.
Primeiro chegou o silêncio, depois e perplexidade, depois as perguntas em cascata. O que devemos pensar sobre isto? E os olhos deles arregalaram-se e fitaram-nos como se a fé de cada um estivesse ali suspensa à espera de uma resposta. “Digam lá, vocês que nos levaram para aqui, que nos guiam como família católica, o que têm a dizer dobre isto?”, era o desafio. As vítimas foram miúdos como eles, a quem lhes disseram para confiar, que foram ensinados a não questionar a batina e o cabeção, a não duvidar dos mais velhos – muito menos dentro de uma Igreja e muito menos dentro de um confessionário. Mais do que ninguém são eles que merecem respostas. Até porque este escândalo não é do passado – lição número 1.
O que lhes dizer? Não há muito tempo para análises profundas, para respostas longas ou justificações mal construídas quando são os mais novos, de coração nas mãos, quem nos questionam. Truques de linguagem, análises justificativas… não colam. Antes afastam e leva-os ao silêncio das dúvidas.
A fé na dita Igreja dos homens mantinha-se suspensa e vacilava como um jarro a balançar em cima de uma mesa. E eu, com o coração aos saltos. Então, disse-lhes o que sei sobre um tema que sempre mantive à distância, porque sempre achei que não era nada comigo até aquela segunda-feira.
São excepções, comecei por garantir. Obviamente que são raras excepções. A Igreja é feita de homens e os homens são pecadores. O mal está em todo o lado. E continuei. Quem fez estas monstruosidades “não são padres, são criminosos”. Mas como distinguir?, insistiram eles que não são tolos. E como é que os deixaram ser padres? E houve ou não houve encobrimento dos outros? Porque é que não acreditaram nas crianças? Sim. Pois… É verdade. Não sei.
Até que finalmente disse-lhes o que sei, sem atalhos nem atropelos, porque as minhas frases feitas não estavam a fazer efeito, não os convenciam de nada e eles não desistiram. A fé na dita Igreja dos homens mantinha-se suspensa e vacilava como um jarro a balançar em cima de uma mesa. E eu, com o coração aos saltos. Então, disse-lhes o que sei sobre um tema que sempre mantive à distância, porque sempre achei que não era nada comigo até aquela segunda-feira.
Não há como corrigir, emendar, evitar estas monstruosidades. Leigos, clero, comunidades, falhámos todos durante muito tempo a muitas crianças. E sobre isso não há muito mais a dizer, além de pedir perdão. Temos todos culpa. Para o bem e para o mal, somos todos Igreja.
Como voltar a confiar? Sempre confiámos e assim deverá ser. A nossa Santa Igreja, que o é por ter sido criada por Cristo para a nossa salvação, está ferida mas tem de continuar a ser um lugar de acolhimento dos que sofrem – porque a sua santidade não se deve aos homens mas à ação do Espírito Santo. Da mesma forma que se confia num professor, num treinador de futebol, em qualquer adulto. Um padre não tem mais autoridade, mais poder, sobre ninguém. É apenas um padre. E sobre esta confiança não há receitas, há regras intransponíveis. Regras para todos, estejam eles num ginásio, num acampamento ou num confessionário.
Leigos, clero, comunidades, falhámos todos durante muito tempo a muitas crianças. E sobre isso não há muito mais a dizer, além de pedir perdão. Temos todos culpa. Para o bem e para o mal, somos todos Igreja.
Sobre o encobrimento, aquilo que é a verdadeira traição, deve-se ao medo. O medo que nos tolda o juízo, que nos paralisa, que tanta vez nos varre a fé, deixou o mal alastrar-se. É familiar este medo porque é sinal de falta de fé. O medo que levou tantas vezes ao terrível silêncio de cumplicidade, na esperança de um mal menor. O medo daqueles que acham que a proteção da Igreja está no terrível silêncio de não “mostrar o flanco”, que estão convictos de que denunciar é escancarar as portas e convidar “os inimigos” a entrarem. Sim, não foi por mal, mas foi o medo que fez todo este mal.
E agora? Agora somos todos chamados a curar as feridas, a estar, a ser e a fazer parte desta Igreja ferida e sofredora. A tentar remediar o mal que se fez sem a pretensão de que o podemos erradicar sozinhos. Somos chamados a levar os nossos filhos pela mão a cada encontro com Deus sem medo de mostrar a nossa vergonha. Sem medo nenhum da verdade e com vergonha de uma culpa que também é nossa, da nossa Igreja.
E agora? Que isto sirva para aprendermos de uma vez por todas que devemos ouvir com o coração e responder com verdade às perguntas certeiras das nossas crianças. É que em cada casa houve uma Igreja que tremeu com a dor das vítimas e as dúvidas dos nossos filhos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.