Sempre desconfiei desse embuste chamado calendário civil. Sempre me pareceu coisa de vigarista. Um cisco no olho do óbvio, deixando a realidade embaciada. Como nos filmes de David Lynch, em que um tipo aparentemente saudável começa a sorrir com uns dentes enormes, demasiado brancos, numa felicidade abjecta e pornográfica.
Em criança, pressentia essa indecência. Não sabia explicar, claro. Porque a criança não explica: intui. E quem me revelou essa verdade absoluta foi a minha mãe. Uma mãe sem paciência, graças a Deus. Capaz de liquidar, com uma única frase curta e terrível, todo o meu entusiasmo pueril pelo «Dia da Criança». Dizia, crudelíssima e santa: «Deixa lá isso. É uma parolice». E eu, singelo e cândido como toda a infância, compreendi nesse instante o que era crescer: descobrir que quase tudo é uma parolice. Com três ou quatro palavras secas, a minha mãe assassinou em mim todos os dias comemorativos das Nações Unidas. E fez muito bem.
O tempo passou e a minha mãe passou a ser outra, que já o era antes de eu saber. A Santa Madre Igreja: uma mãe doce e severíssima. Em criança tinha a candura indomável dos que não sabem rigorosamente nada. Não conhecia os Mandamentos, ignorava as Bem-Aventuranças, desconhecia a força mística da oração e a austeridade viril da ascese. Não fazia ideia das catedrais erguidas há séculos, nem da civilização inteira organizada por um calendário celeste e um quotidiano povoado por santos de pedra e carne — aterradores na sua espiritualidade concreta. Mas agora, absolutamente manso, com a obediência cega e fatal dos espíritos fracos, descobri que uma simples
adesão intelectual pode carregar consigo a força brutal de mil embarcações.
O que descobri então foi o seguinte: a verdadeira natureza das coisas só é clara sob o olhar impiedoso da Igreja. Nós, pobres diabos, precisamos da literalidade vital da religião. Quando a Igreja namora com o mundo, sai sempre enganada, empobrecida. É uma soma que termina sempre em subtracção. Melhor seria que o mundo copiasse da Igreja. Seria um clericalismo bonito, necessário, escandalosamente santo.
O que quero dizer é isto: 19 de Março é simplesmente a Festa de São José. São José foi pai? Graças a Deus foi. Pois então, aproveite-se para rezar pelos nossos pais. Mas não se tente oferecer ao mundo (que ignora São José) uma versão mais cómoda e acessível. Não adaptemos José à miséria transitória das frescuras do presente.
Porque até a definição de pai muda. Hoje, um pai é uma criatura de sapatos de ténis e tatuagens. Muitas vezes, um adolescente barbudo. Há cem anos, homens tatuados e barbudos podiam certamente procriar — e procriavam. Mas seriam marinheiros, mercenários, homens perigosos, sombras vagas que habitavam a imaginação aflita dos filhos abandonados. Não seriam pais. Há cem anos, o pai verdadeiro era parecido com São José. E, há cem anos, não havia Dia do Pai.
E agora o leitor avisado perguntaria: “Mas não será precisamente por isso que é tão importante chamar hoje Dia do Pai ao dia de São José? Para que esses pais de agora tenham um modelo?”. E eu digo-lhe que não, não é. Porque é justamente ao identificarmos o Dia do Pai com o dia de São José que diluímos a força autónoma e misteriosa desta figura silenciosa. Os dias de todos e de ninguém dissolvem sempre aquilo que tocam.
Para saber o que é ser pai, é preciso saber quem é José. Discreto e laborioso, na sombra do plátano nazareno, onde a grandeza da paternidade floresceu sem ruído. Não nos deixou uma palavra. Nem precisaria. Deixou-nos uma oficina, um par de mãos e uma obediência muda ao absurdo celestial. Não discutiu com Deus, não pediu explicações lógicas para uma situação impossível. Fez o que um pai faz — protegeu, acolheu e amou.
Para saber o que é ser pai, é preciso saber quem é José. Discreto e laborioso, na sombra do plátano nazareno, onde a grandeza da paternidade floresceu sem ruído. Não nos deixou uma palavra. Nem precisaria. Deixou-nos uma oficina, um par de mãos e uma obediência muda ao absurdo celestial. Não discutiu com Deus, não pediu explicações lógicas para uma situação impossível. Fez o que um pai faz — protegeu, acolheu e amou.
Pela lógica deste mundo, os santos deveriam ser escolhidos pela sua heroicidade (e há heroicidade na santidade), pelos prodígios que realizaram (e há prodígios), ou pelos discursos que proferiram (também). Mas este mundo, graças a Deus, não é lógico: é mágico. Como o cinema era mágico. E assim, São José é padroeiro dos pais porque nunca pronunciou uma única palavra. Como Chaplin, que sem dizer nada, dizia sempre tudo. Este mundo que não sabe estar calado não percebe isto. Nunca perceberá. Mas o silêncio não só fala, como sustenta o próprio mundo.
E no calendário onde contamos o tempo verdadeiro, 19 de Março não precisa de explicações. Basta-lhe o silêncio.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.