Temos assistidos, nos últimos anos, a avanços científicos e tecnológicos que suscitam em nós a inevitável pergunta pelo futuro da humanidade. Não apenas a pergunta pelo futuro do mundo, mas pelo futuro da própria humanidade. Ao longo de milénios, os seres humanos aprenderam a manipular o mundo à sua volta, moldando paisagens, forçando a emergência de novas espécies e interferindo no próprio clima. O que está em causa na atualidade tem, contudo, um alcance muito mais vasto: trata-se da possibilidade de uma autêntica reconfiguração do humano. Ou seja, o ser humano como o conhecemos pode simplesmente deixar de existir. Utilizando a sugestiva expressão cunhada por Yuval Harari, o Homo sapiens dará lugar ao Homo deus. A expressão Homo deus não remete, como poderia intuir uma mente mais teológica, para o conceito de divinização próprio do Cristianismo: o ser humano deificado por iniciativa de Deus, na economia da salvação. A expressão refere-se, antes, à «nova versão» de ser humano que vai suceder ao ser humano como conhecemos. Uma versão melhorada, sem dúvida, mas por iniciativa do próprio ser humano e não de Deus.
Na obra intitulada Homo deus, publicada em 2015, Yuval Harari divide a história da humanidade em três grandes períodos: até ao início da Modernidade, a grande instância de sentido era Deus, reconhecido como o referente absoluto da moral, da estética e da própria organização social, política e económica. A partir do início da Modernidade, contudo, o lugar de Deus passa a ser ocupado pelo ser humano. Surge a era do Humanismo, o qual, segundo Harari, assumiu, ao longo da Modernidade, três ramos principais: o humanismo liberal, o humanismo socialista e o humanismo evolutivo, cujos defensores mais célebres foram os nazis (não deixa de ser desconcertante a opção de Harari de considerar o nazismo uma forma de humanismo). As duas últimas modalidades do humanismo acabaram por soçobrar, por razões históricas complexas que não cabe aqui aprofundar. Vingou o humanismo liberal, que tem como principal fundamento a convicção de que cada ser humano é um indivíduo com um valor ímpar, cujas escolhas que faz livremente são a derradeira fonte de autoridade. Os humanistas liberais celebram a experiência individual, a liberdade de escolha e a privacidade.
Segundo Harari, no entanto, será o próprio dinamismo interno do humanismo liberal que irá ditar, em breve, o seu inevitável fim. Em primeiro, lugar, os desenvolvimentos tecnológicos farão com que os seres humanos acabem por perder a sua utilidade económica e militar e, por conseguinte, o sistema político e económico não lhes dará tanto valor. Os desenvolvimentos tecnológicos estão a minar, também, a liberdade dos indivíduos e a sua privacidade. Cada vez mais, os algoritmos decidem por nós, escolhendo, sem nada nos perguntar, o que vemos, lemos e compramos. Finalmente, alguns indivíduos continuarão a ser valorizados, mas estes serão, segundo Harari, uma elite de superhomens aperfeiçoados e não a grande parte da população.
A previsão de Yuval Harari é, no mínimo, desconcertante: o fim do humanismo liberal não significa apenas o fim de uma metanarrativa. O fim do humanismo liberal ditará o fim da humanidade como a conhecemos. Segundo o autor, são duas as possibilidades que se antevêem: o tecno-humanismo ou a religião dos dados. O tecno-humanismo concorda que o Homo sapiens, tal como o conhecemos, já terminou o seu trajeto histórico e que, no futuro, deixará de ser relevante, mas conclui que, por isso mesmo, devemos usar a tecnologia para criar o Homo deus – um modelo bastante humano bastante superior. «Visto que a inteligência se está a separar da consciência», afirma Harari, «e que a inteligência não consciente está a avançar a um ritmo vertiginoso, os humanos terão de promover ativamente a melhoria das suas mentes, a fim de se manterem em jogo…. A primeira remodelação mental da primeira Revolução Cognitiva deu ao Homo sapiens acesso ao campo da intersubjetividade; uma segunda revolução cognitiva talvez dê ao Homo deus acesso a novos domínios inimagináveis e faça de nós donos do universo.» O ser humano terá, em breve, a capacidade de aperfeiçoar a sua própria mente, com o auxílio da engenharia genética, da nanotecnologia e dos interfaces cérebro-computador, o que lhe permitirá dispor de capacidades extraordinárias, muito superiores às capacidades do Homo sapiens. O grande problema é que este upgrade só estaria disponível para uma pequena minoria de seres humanos com aceso a grandes quantias de dinheiro. Além disso, existe, segundo Harari, «a possibilidade de conseguirmos melhorar os nossos cérebros e corpos e ao mesmo tempo perdermos as nossas mentes.» Pode ser que a segunda revolução cognitiva com que os tecno-humanistas sonham produza «elementos humanos que comuniquem e processem dados com uma eficácia inédita, mas que sejam capazes de prestar atenção, sonhar ou duvidar. Durante milhões de anos fomos uma versão melhorada dos chimpanzés. Pode ser que no futuro nos tornemos uma versão sobredimensionada das formigas.»
A alternativa ao tecno-humanismo é, segundo, Harari, o Dataísmo, que concebe o universo com um fluxo constante de dados e no qual o valor de qualquer fenómeno ou entidade é determinado pela sua contribuição para o processamento de dados. O Dataísmo derruba as barreiras entre animais e máquinas e espera que os algoritmos eletrónicos acabem por decifrar e obter um desempenho superior ao dos algoritmos bioquímicos. Segundo esta visão, quando isto acontecer, o ser humano será simplesmente substituído pelas máquinas que ele próprio criou. «Se a humanidade é, de facto, um sistema de processamento de dados, qual é o seu propósito? Os fiéis do Dataísmo dirão que é criar um novo sistema de processamento de dados ainda mais eficaz, denominado Internet-de-Todas-as-Coisas. Quando a missão for concluída, o Homo sapiens desaparecerá.»
As duas possibilidades esboçadas por Harari para o futuro da humanidade são ambas sombrias, embora por razões distintas. Enquanto sobre a primeira paira o espectro da despersonalização, sobre a segunda paira a ominosa profecia de que o ser humano será substituído por máquinas.
As duas possibilidades esboçadas por Harari para o futuro da humanidade são ambas sombrias, embora por razões distintas. Enquanto sobre a primeira paira o espectro da despersonalização, sobre a segunda paira a ominosa profecia de que o ser humano será substituído por máquinas. A tentativa de prever o futuro é sempre arriscada. Quando vemos filmes de ficção científica realizados há algumas décadas atrás, o futuro real parece-nos sempre muito mais sofisticado que o futuro ficcionado. Podemos olhar para os oráculos de Harari como se pertencessem ao género da ficção científica, com a certeza que o futuro real acabará, inevitavelmente, por iludir a nossa capacidade previsão. Vale a pena, no entanto, prestar atenção aos avisos de Harari: a humanidade tem nas suas mãos as ferramentas para operar uma autêntica reconfiguração da sua própria natureza, e as consequências desta reconfiguração podem ser nefastas.
É neste ponto, justamente, que Teilhard de Chardin e a sua visão do futuro da humanidade nos podem ajudar. Apaixonado pela ciência, Teilhard olhava os desenvolvimentos tecnológicos como parte integrante do mesmo processo evolutivo que deu origem à vida, às várias espécies, ao ser humano, e à própria cultura. Teilhard morreu algumas décadas antes da invenção da internet e, no entanto, algo como a internet era, para ele, uma quase inevitabilidade. Vale a pena recordar o que escreve na sua obra mais conhecida, O Fenómeno Humano (1955): «A terra não só a cobrir-se de uma miríade de grãos de pensamento, mas também a envolver-se num único invólucro pensante até formar apenas, funcionalmente, um único e vasto grão de pensamento, às escala sideral. A pluralidade das reflexões individuais a agruparem-se e a reforçarem-se no ato de uma única reflexão unânime.»
Tal como Harari, Teilhard prevê que a ciência será capaz de produzir uma versão melhorada do ser humano. Numa expressão que causou, recentemente, alguma polémica, Teilhard de Chardin fala de um «eugenismo fortemente humano»: «O pensamento a aperfeiçoar artificiosamente o próprio pensamento.» Tal não significa, contudo, que se possa, sequer, considerar a hipótese de deixar para trás alguns seres humanos, ou de privilegiar algum grupo sobre outros. A emergência da noosfera, como lhe chama Chardin, só será possível com um empurrão unânime de toda a humanidade: «A saída do mundo, as portas do futuro, não se abrem para diante a alguns privilegiados apenas, nem a um só povo eleito, entre todos os povos! Elas não cederão senão a um empurrão de todos juntos, numa direção em que todos juntos se podem reunir e completar numa renovação espiritual da terra».
«A saída do mundo, as portas do futuro, não se abrem para diante a alguns privilegiados apenas, nem a um só povo eleito, entre todos os povos! Elas não cederão senão a um empurrão de todos juntos, numa direção em que todos juntos se podem reunir e completar numa renovação espiritual da terra». (Teilhard Chardin)
Homem cheio de esperança, Teilhard de Chardin, embora consciente de que o ser humano pode fazer escolhas erradas, não pode conceber que o ser humano fracasse na sua vocação de ser a flecha da evolução. É no homem que residem todas as esperanças da noosfera, quer dizer, da biogénese, quer dizer enfim, da cosmogénese. «O homem é insubstituível. Portanto, por mais inverosímil que seja a perspetiva, ele tem de se realizar, não necessariamente, sem dúvida, mas infalivelmente.»
Para Harari, a história evolui no sentido da despersonalização. Para Teilhard, pelo contrário, a história do universo e da humanidade evolui no sentido da crescente personalização. O cume da evolução consiste no hiperpessoal. Teilhard reconhece na prática científica uma obsessão com a despersonalização, algo que deve ser corrigido. A última palavra pertence, contudo, ao movimento imparável de personalização. «Não, ao confluírem segundo a linha dos seus centros, os grãos de consciência não tendem a perder os seus contornos e a misturar-se. Acentuam, pelo contrário, a profundidade e a incomunicabilidade do seu ego. Quanto mais se tornam, todos juntos, o Outro, mais se acham eles mesmos.» Ou seja, para Teilhard, o mergulho no oceano da consciência não significa a diluição da dimensão pessoal, mas a sua afirmação.
Yuval Harari e Teilhard de Chardin oferecem-nos, sem dúvida, duas profecias muito diferentes sobre o futuro da humanidade. Talvez precisamos de ambas: a de Harari, que nos avisa sobre os poderes, potencialmente destrutivos, que o ser humano vai ter à sua disposição; e a de Teilhard de Chardin, que oferece uma leitura espiritual dos progressos tecnológicos e científicos, temperada pela esperança cristã.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.