Nos últimos tempos, os que têm o vício de vaguear pelas livrarias, espiando as novidades, têm sido surpreendidos ao descobrir, entre o novo, muitas reedições de obras que, em diferentes fases da vida, os marcaram profundamente. De tal modo lhes estão coladas emoções, descobertas, heróis, que recusam a releitura. Por isso as livrarias (infelizmente em decréscimo), mais do que as Feiras do Livro, são lugares mágicos, silenciosos, onde é permitido deambular de estante em estante, manusear os volumes com o respeito de quem escolhe fruta delicada.
Dispostos com visibilidade nas mesas ou prateleiras, os grandes clássicos ou livros de autores que admirávamos, em novas traduções, nova roupagem, paginados em mancha bem estudada e vertidos em fontes elegantes e bem legíveis, aí estão, como que a competir com e-books, e tão longe da simplicidade dos preciosos Clássicos Sá da Costa, Europa América ou Livros do Brasil.
“Quando lá entro mando comparecer diante de mim todas as imagens que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-se esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos recetáculos ainda mais recônditos. Outras irrompem aos turbilhões … outras imagens ocorrem-me com facilidade e em série ordenada, à medida que as chamo … é o que acontece quando digo alguma coisa decorada.”
Elogio da memória
Os que foram abençoados com uma excelente memória entendem desde muito jovens o bem precioso que possuem e espontaneamente o exercitam, mesmo nos períodos em que o ensino tende a desvalorizar esse dom. Existem maravilhosos textos sobre a memória dos homens e a sua importância, mas Santo Agostinho, na descrição que faz do “Palácio da Memória”, apresenta uma das mais poéticas. Com efeito, no livro X, 8, das Confissões, Santo Agostinho inicia as suas profundas reflexões sobre a memória, instrumento de tal valor que o levará, em última análise, a chegar a Deus.
“Quando lá entro mando comparecer diante de mim todas as imagens que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-se esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos recetáculos ainda mais recônditos. Outras irrompem aos turbilhões … outras imagens ocorrem-me com facilidade e em série ordenada, à medida que as chamo … é o que acontece quando digo alguma coisa decorada.”
De facto, tudo o que foi dito até agora tem a ver com a memória. E suscita também algumas questões. O que faz que haja autores que desaparecem por várias gerações e outros que subitamente revivem, para alegria daqueles que com eles conviveram e cresceram? Há certamente estratégias editoriais, como se compreende. Mas a visita demorada a uma livraria é sempre um exercício desse extraordinário mecanismo humano. Que emoção, O Conde de Monte Cristo em dois volumes! A Novela de Xadrez, de Stephen Zweig, depois ou simultaneamente com o filme Adeus, Europa! O reaparecimento da Maria Judite de Carvalho! E quem não fica encantado diante da nova edição de O Livro de Cesário Verde? E as obras de Charles Dickens, que se associam a O Diário de Anne Franck pelas incontidas lágrimas de olhos juvenis.
Resultado: não se resiste a ter, apesar da falta de espaço, bibliotecas duplas, ou triplas, como quando convivem na prateleira, por exemplo, três Clepsidras, uma das quais em irresistível edição chinesa bilingue. Casos especiais de pessoas da mesmíssima geração literária colecionam todas as edições existentes de, por exemplo, O Livro do Desassossego, ou, paralelamente, todas as edições de Maria Callas, incluindo versões piratas de ensaios, onde são audíveis “algumas divinas falhas”.
“A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falível”.
E todos os que durante a vida tiveram o privilégio de conhecer verdadeiros heróis (já não os da ficção), que continuam a admirar, tal foi o impacte no seu conhecimento, no desabrochar da sua humanidade, não ficam por vezes magoados com o silêncio que pesa sobre eles? Não se perderá nunca a memória do Padre Manuel Antunes nem de Sophia. E Ruy Belo, Fiama, Vitorino Nemésio, David Mourão-Ferreira? E Maria de Lurdes Belchior, Lurdes Pintasilgo, Fernando Guedes?
Aconteceu que uma recente exposição, a do gravador, intelectual e matemático holandês Maurits Cornelis Escher, no Museu de Arte Popular em Lisboa, fez irromper a saudosa recordação de esse outro grande artista gráfico inglês, Peter Glemser, formador de muitos editores pelo mundo fora, jovem herói da II Guerra Mundial, citado em livros e premiado na grande imprensa editorial. Retrato físico rápido, à Bocage: figura de elfo, olhos azuis de boneca, dedos espatulados com que dobrava papel e desenhava. Muito conceituado no meio da edição internacional, este publisher e mentor convidava, por exemplo, os seus aprendizes de editor para um almoço de trabalho com Carl Sagan, em Nova York, para cotejar ideias para um novo Atlas Mundial que havia de conceber. Era o melhor do seu tempo e só recorria aos melhores para concretizar os seus projetos.
A pesquisa “Peter Glemser”, o seu nome, descreve em imagens e texto um cantor atual de rock pesado. Na Internet só resta da sua memória o nome de uma flor: Tulipa Dubbele Late Grp dubbel ‘Peter Glemser’, cor amarela. É muito pouco para todos os que com ele aprenderam e privaram, mas é bonito. Há que aceitar as palavras de Primo Levi: “a memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falível”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.