O legado político do Papa Francisco

Para o Papa Francisco, ser bispo de Roma não se resumia a falar para dentro de portas, assumindo, com coragem, a responsabilidade de ser uma referência na vida social e política do nosso mundo.

Estamos em tempos de balanço. Em 2013, quando assumiu a liderança da Igreja, Jorge Mario Bergoglio era um desconhecido de todos. Ao contrário de Joseph Ratzinger, cuja vida podia ser escrutinada pela opinião pública devido à grande exposição que vinha tendo como Perfeito para a Congregação da Doutrina da Fé, de Bergoglio não se sabia o que pensava, como agia, ou em que tom falava. Concretamente, estes 12 anos mostraram que para o Papa Francisco ser bispo de Roma não se resumia a falar para dentro de portas. Pelo contrário: Francisco assumiu, com coragem, a responsabilidade de ser uma referência na vida social e política do nosso mundo. Muitas vezes admirado, gerou também controvérsia e suspeita. Mas não se escondeu nem aceitou que o seu ministério fosse compartimentalizado, reduzido apenas a uma dimensão da vida que é interior, intimista, espiritual no pior sentido dos termos. Como jesuíta, Francisco acreditou piamente que a fé cristã só é verdadeiramente cristã se levar a sério as consequências da Encarnação e se desenvolver um modo de viver totalmente encarnado, comprometido com a vida quotidiana, juntando o que é da terra e o que é do céu, o que é passageiro e o que é perpétuo.

Em tempos de balanço, com este pano de fundo, é fundamental perceber que impacto político teve o Papa Francisco e o seu pontificado. Há seis notas que me parecem pertinentes.

1.É importante começar por reconhecer o respeito que recolheu junto das grandes instituições políticas e figuras públicas mundiais. Depois do seu discurso no Congresso dos Estados Unidos da América e na Assembleia-geral das Nações Unidas, recebeu elogios rasgados, por exemplo, de Barack Obama, John Boehner, Ban Ki-moon, Jeffrey Sachs ou Leonardo di Caprio. Além disso, os discursos que proferiu nessas ocasiões deram visibilidade, por exemplo, à luta pela proteção do planeta e pelo desenvolvimento sustentável de todos os povos. Durante o seu Pontificado, Francisco foi efetivamente ouvido e valorizado em contextos de política “profissional” e aquilo que disse modificou a agenda de instituições com grande impacto – não se limitando a influenciar apenas consciências individuais de um ponto de vista estritamente moral.

2. Num segundo nível, há que destacar o impacto que teve no mundo da diplomacia real. Seguindo a sua direção, a Igreja desempenhou um papel na harmonização das relações entre os EUA e Cuba. Foi também Francisco que conseguiu o último acordo com a China para a nomeação de bispos, um tema que ao longo das últimas décadas tem sido quente. E, não menos importante, participou nos esforços internacionais para evitar em 2013 uma intervenção militar na Síria, antecipando as suas trágicas consequências. Pode destacar-se também que já desde 2014 foi um dos principais da solução de dois Estados para Israel e a Palestina, juntando Shimon Peres e Mahmoud Abbas para um encontro que, infelizmente, comprou paz por pouco tempo.

Pode destacar-se também que já desde 2014 foi um dos principais da solução de dois Estados para Israel e a Palestina, juntando Shimon Peres e Mahmoud Abbas para um encontro que, infelizmente, comprou paz por pouco tempo.

3. A terceira nota é uma especificação de algo a que aludi já no primeiro ponto. Durante o seu Pontificado, Francisco transformou o cuidado pelo planeta numa questão política universal. Com a sua encíclica Laudato Si, promoveu a necessidade de olhar para a criação de Deus como algo que tem que ser respeitado e não apenas explorado. Com isto, conseguiu que o vocabulário em torno do ambiente e da ecologia deixasse de ser associado apenas a grupos ideologicamente extremados e vistos com suspeita por parte da sociedade civil. No seu encalço, a ONU e o seu Secretário-Geral adotaram, a partir de 2017, essa luta como uma das suas preocupações maiores. O facto de o cuidado pelo planeta ser, hoje em dia, um assunto incontornável em programas políticos partidários e de governos pelo mundo inteiro deve-se, em parte, a Francisco.

4. Dito isto, aquilo que me parece ser mais relevante do ponto de vista político no pontificado do Papa Francisco é a recuperação da dimensão pública afetiva da Igreja. Com Francisco, é fácil de se gostar da Igreja, ou de se ouvir falar positivamente da Igreja. Vivemos num mundo fragmentado, em que não há grandes consensos em temas controversos nem figuras de referência para os arbitrar. A exceção a isso foi/ tem sido o Papa Francisco: uma figura consensual, não necessariamente por via do que diz, mas sobretudo do que faz. Deu o exemplo com imagens fortes nos lugares mais inesperados: em Lampedusa, encontrou-se com refugiados e migrantes e chorou com eles; no seu encontro com prisioneiros, em mais do que uma Quinta-Feira santa, juntou cristãos e muçulmanos; nas suas viagens, insistiu em encontrar-se com outros líderes religiosos em contextos de violência, como por exemplo na ida ao Sudão com o Arcebispo de Cantuária. Tudo isso é político. Ver-se e admirar-se o Papa gera um afeto que influencia a forma de pensar e organizar a vida em sociedade.

5. Nenhuma leitura do legado político do Papa Francisco ficaria completo sem referir também as suas limitações. Há duas que saltam à vista. Talvez a maior falha seja o facto de nunca ter entendido o que são os EUA, quem é o seu povo, qual é a história deste país. Apesar do êxito da sua visita ao país em 2013, Francisco nunca se travou de amores por Obama ou por Trump. Com Biden, pareceu sempre ter um relacionamento indiferente. O ponto de partida biográfico mostra que Bergoglio é, de muitas maneiras, um peronista. Assim cresceu, nesse ambiente, classificando a organização económica estadunidense sempre com suspeita. Com frequência, hostilizou o episcopado e o laicado americano com declarações que foram vistas como sendo descontextualizadas e pouco informadas. Essa distância em relação ao país e à igreja nos EUA diminuiu, por exemplo, a influência que Francisco poderia ter tido junto de Trump e de Biden em temas ligados à migração forçada ou ao cumprimento dos acordos de Paris.

6. A segunda limitação que salta à vista é a que diz respeito ao entendimento dos mecanismos políticos e de diplomacia em torno da guerra da Ucrânia. Imediatamente após o início da invasão russa, Francisco desencorajou a Ucrânia de se defender com recurso a armas e criticou aquilo que na tradição militar é conhecido como a tradição da guerra justa. Porém, aquilo que o Papa foi dizendo pareceu com frequência pouco informado e mal argumentado do ponto de vista da política real. Não é que Francisco seja culpado pela ofensiva russa, longe disso. E com frequência, nas orações do Angelus manifestou o seu  afeto e proximidade ao “martirizado povo da Ucrânia”. Mas é difícil não olhar para fevereiro de 2022 e identificar no discurso de Francisco uma desadequação em relação à realidade que diminuiu a defesa ucraniana e desviou os holofotes do mediatismo para longe da violência que tinha apenas um iniciador.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.