A palavra tem o seu quê de artefacto, de improviso, de tateamento comunicacional. É a menos má arma que temos contra a nossa indizibilidade. É tão forte e útil, quanto precária e frágil. É, sobretudo, dinâmica, a palavra. Sabemos todos, por experiência própria, que a palavra é também ambígua e não depende só de si mesma. Entre outras coisas, a mesma palavra, se preciso for, tanto mata como liberta… É através da palavra que nos construímos e convergimos, mas, também por ela, nos desencontramos.
O sufixo “ismo” é relativamente recente no nosso linguajar. Incluído há alguns poucos séculos na nossa família linguística, o seu uso tem vindo a intensificar-se e apresenta-se hoje nos mais versáteis cenários semânticos. O “ismo” não tem carga fixa assumindo valores diferentes conforme o contexto. Gostava de me focar no lado mais ‘tóxico’, do sufixo “ismo”. Como sou químico, vou tomar a liberdade de convocar o enquadramento de “dose excessiva”, para querer aludir a certa intensidade, certo enfoque, certo exagero, também… Um exemplo óbvio é a palavra alcoolismo. É um “ismo” que diz respeito a uma dose intensa (porventura letal…) de algo que, tomado na dose certa, é pura e simplesmente bom, até muito bom. O álcool é fonte de sabor, de alegria, de vida e de sinalidade. Tomado a mais, deixa de ser tónico, passa a ser tóxico … e inebria. Nos parágrafos abaixo, situo-me como Cristão Católico Apostólico Romano face a muitos potencias “ismos” que intoxicam:
Importa conservar, principalmente na vida e no coração, uma herança testemunhal milenar que comunitariamente se tece para oferecer sentidos de esperança. Mas conservar, em Igreja, é sempre um gesto aberto e arriscado, atento aos sinais do mundo, dinâmico no mandato evangélico do sempre novo.
Assumo o caráter institucional da minha fé. Reconheço que organização e estrutura ajudaram na história e ajudam no tempo presente, qual copo que vale a pena ter para beber vinho. Mas um copo (instituição) não tem que ter peneiras nem obsessão de ser vinho (Espírito). O copo serve para beber vinho e copos por si mesmos são vidros infecundos, que até fazem feridas…
A fé encarnada é, em si mesma, continuista. Jesus de Nazaré nasce na história e funda e refunda a partir do que existe. É um Judeu que entra na fé e na vida do seu tempo e liberta na continuidade, sem romper com a história. É alguém que, mais do que ter amado e criado, ama e cria, ou, melhor, vai amando e criando… na realidade continuada.
Sem a tradição, esse gesto de transmitir, de dizer o tesouro que se traz no barro frágil, nenhum de nós teria condição de receber e continuar o dom. A tradição contempla igualmente a dimensão comunitária da fé, porque faz por dizer, a partir de Cristo, através dos tempos, o(s) “nós” da Fé. Mas tradição não tem que casar com resistência, com estaticismo e com rigidez. Pelo contrário, também porque a Boa Nova reclama, a tradição só sobrevive se se souber (re)dizer.
É alguém que, mais do que ter amado e criado, ama e cria, ou, melhor, vai amando e criando… na realidade continuada.
A Igreja tem os seus dogmas e eu viajo com eles, também. Os dogmas são para nós apontamentos fortes do que se entende ser a verdade e, é bom registar, têm naturezas e valores diferentes uns dos outros. Gosto de associar à palavra dogma uma outra, que nada tem a ver, no sentido etimológico: boia. E há boias que quero assumir como verdades que voluntariamente não desejo discutir, mas antes acolher e viver. Preciso delas, a partir de dentro de mim mesmo, para me não afundar no mar gozoso, mas tumultuoso da vida. Uma delas, a boia maior, da qual não me quero apartar, é esta mesma: a certeza que Deus é amor. As outras boia(zitas) ancoram nesta maior e poderão ser mais dinâmicas do que as fazemos… As boias de sinalização no mar oscilam com as correntes. Embora ancoradas, não são estátuas.
Foi e é importante uma certa doutrina, fonte de ensinamento e sabedoria, que nos pode iluminar no caminho e ser em si mesma testemunha de abertura e dádiva. Mas a doutrina não tem que ser doutrinadora… Pelo contrário, se é sabedoria a empreender pedagogicamente (a propor e não a impor, portanto), terá de ser aberta e recíproca. A doutrina cristã de século XXI, inspirada num tal de Jesus de Nazaré, deve ser principalmente de escuta. Propõe-se, mais do que com palavras, com vida(s), mas recebe e ilumina-se na diferença. É, em rigor, por ser cristã, uma doutrina aprendente.
Na Igreja, alimento-me de sacramentos, sinais visíveis que me ajudam nesta ponte tensional inacabada, entre o visível e o invisível, o ausente e o presente, o inatingível e o tocável. Nestes sinais, partilhados, abertos, esbanjados e oferecidos, realiza-se, no lastro da nossa fé, o que se representa. Mas nenhuma sacramento pode ser vivido sem a consciência da sua paradoxal mas real infidelidade. O sacramento é, em si mesmo, também, insuficiente. Como a fé em Deus, o sacramento quer precisar da liberdade, da inteireza e da fé de quem participa. Sem adesão coerente e profundamente interior, o sacramento pode ser superficializado… e infecundo.
Mas… recuso e até gasto alguma energia de luta contra os “ismos” caricaturais de fundamentalismo destas procuras. Afasto-me do conservadorismo, do institucionalismo, do continuismo, do tradicionalismo, do dogmatismo, do doutrinismo e do sacramentalismo.
Portanto, assumidamente, sou conservador, institucional, continuador, tradicional, dogmático, doutrinal e sacramental. A vida espiritual não exige o ser religioso. Estes apontamentos comunitários de pertença vão-me ajudando a ser o que posso ser, salvando-me de mim mesmo. Mas… recuso e até gasto alguma energia de luta contra os “ismos” caricaturais de fundamentalismo destas procuras. Afasto-me do conservadorismo, do institucionalismo, do continuismo, do tradicionalismo, do dogmatismo, do doutrinismo e do sacramentalismo. São estas doses excessivas, brotando de dentro e para dentro e para fora da Igreja Católica, que, tantas vezes, desperdiçam o tónus fundamental. Outros “ismos” de certo sentido oposto, como os progressismos ou os descontinuismos (revolucionários), também me repelem. Mas fica para outra reflexão tal desenvolvimento.
O “ismo” que vale a pena é mesmo o do Cristianismo… Admito que para o sentido da minha vida e do mundo, a identificação com Cristo é da ordem do ‘quanto mais melhor’. Deste “ismo”, sim, quero voluntariamente embebedar-me. Há uma ironia, nos próprios Evangelhos, que me sustenta: Jesus de Nazaré, em muitos dos seus gestos, palavras e sinais, opõe-se, precisamente, a todos os fundamentalismos, essas sombras que não deixam eclodir a proposta do radical amor. O cristianismo é um “ismo” que precisa sempre, para evitar os “ismos” que não contém, de três pilares fundamentais: a abertura, a novidade e o dinamismo. É também por isto que desejo celebrar, quotidianamente, com tanta alegria e vontade quanto (auto)desperdício, o “ismo” que me dá Ser: por Cristo, com Cristo, em Cristo…
Fotografia de João Ferrand.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.